Coisas tristes demais para serem mencionadas

Não me lembro de alguma vez ter sido a favor da pena de morte, definitivamente não desde que sou adulto. Mas houve pelo menos uma vez em que eu de fato pensei que nada poderia punir aquilo, senão a pena de morte ou algo parecido. Foi quando eu conheci a história e ouvi o áudio de Fernandinho Beira-Mar comandando a tortura e o assassinato de um rapaz que havia se encontrado com a ex-namorada do bandido.

Se você não conhece a história e não escutou o áudio, não procure. É uma das coisas mais horrendas e nojentas que eu já vi. É provavelmente pior do que qualquer cena de Tarantino. E é real.

Eu não sei dar os detalhes do caso, porque não quero pesquisar sobre ele. Não sei o nome do menino, nem o ano em que aconteceu. Sei que ele está morto, e Beira-Mar foi condenado a muitos anos de prisão por isso. Não vou dizer exatamente como foi, porque é terrível demais. Algumas coisas são tristes demais para serem mencionadas.

***

Eu gostaria de pensar que nunca ninguém no mundo sofreu nada parecido com o que aquele rapaz sofreu. Mas eu sei que não é verdade. Sei que, ao longo da caminhada humana coletiva sobre a terra, pessoas sofreram coisas até piores do que os horrores que aquele garoto sofreu, por maiores que sejam. Infelizmente, em algum lugar do mundo, provavelmente pessoas passam por coisas terríveis como aquelas todos os dias.

São os prisioneiros de Auschwitz. É a menina estuprada por dezenas de rapazes e filmada. É Amelinha, nua sobre o próprio vômito e urina, ligada a fios elétricos de tortura, vendo os filhos de cinco e quatro anos de idade sendo obrigados a encarar aquela cena, nas mãos de um coronel.

E, do outro lado, é o presidente que vota no parlamento em nome desse coronel, em referência a seus crimes.

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Eu gostaria de pensar que esse candidato não teria sido eleito se ele tivesse homenageado Beira-Mar, Hitler ou um dos algozes do estupro coletivo, ao invés do coronel. Mas eu não sei se é verdade. Afinal, ele próprio disse que não estupraria sua colega porque ela, nas palavras dele, não merecia. Infelizmente, muito sinceramente, eu não sei se homenagear Beira-Mar, Hitler ou um dos estupradores faria ele perder as eleições.

É difícil acreditar que os bons são maioria quando mais da metade dos votos válidos de um país de cerca de 200 milhões de pessoas foram para um homem que, durante uma sessão parlamentar, pagou tributo a um torturador, comandante de uma unidade onde, sob sua gestão, pelo menos 45 pessoas foram mortas.

E é difícil demais, demais acreditar que pessoas que você ama votaram nesse candidato.

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Eu fiquei a princípio um pouco receoso de comparar o coronel homenageado pelo futuro presidente a Beira-Mar. Achei que talvez fosse demais. Achei que seria injusto apelar para a emoção para criticar o capitão da reserva.

A racionalidade e as evidências, e a filosofia e o método científico como um todo, são muito importantes para mim. Apelar para as emoções para criticar um futuro presidente vai contra a racionalidade que me é tão cara. Mas eu estou tranquilo por duas razões. Primeiro, porque os crimes do general estão realmente no mesmo nível do crime de Beira-Mar: ambos comandaram tortura e assassinato. Segundo, porque a associação do futuro presidente ao torturador é clara, recente e inequívoca, fruto da boca do próprio capitão.

Por fim, não é preciso apelar para as emoções para mostrar que nosso presidente para os próximos quatro anos foi uma escolha bizarra e mórbida. Há argumentos racionais suficientes para isso.

***

Não sou favorável à pena de morte, porque a vida é sagrada. Acho que o Estado não deve ter o poder de tirá-la de seus cidadãos. Nem dos mais vis. É um poder grande demais, sobre algo que transcende as relações ordinárias de poder.

Afinal, não somos ditadores nem megatraficantes para pensar que temos poder sobre o direito de viver de outrem.

Quanto ao presidente e ao coronel que lhe é tão caro, nós sabemos quem são. Não é preciso dizer seus nomes. Algumas coisas são tristes demais para serem mencionadas.

18.11.15. Coisas tristes demais para serem mencionadas
Fonte: David Santaolalla.

4 comentários em “Coisas tristes demais para serem mencionadas

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  1. Tem uma verso que diz: Gentileza gera gentileza. Quando escuto as falas do capitão, como aconteceu hoje com os áudios trocados e negados , com o ministro demitido, rezo para que a aspereza e a rudeza não tenham o mesmo dom.

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  2. Muito bom seu texto! É assim a vida. Alguns sofrem, outros não. Alguns sofrem absurdamente. Concordo plenamente com seu ponto de vista sobre o absurdo presidencial (em todos os sentidos).

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