Medicina, tatuagem, dor e arrependimento

Do you know what a duvet is?

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Muitas vezes já me perguntaram por que eu deixei de estudar direito para estudar medicina, e sempre perguntam se eu não gostava do direito. Eu gostava. Não amava, mas gostava.

Eu não acho que eu serei mais feliz ou realizado ou satisfeito na vida por estar fazendo medicina do que seria se tivesse feito direito ou engenharia ou psicologia ou letras ou economia. Eu ainda gosto de discutir os aspectos normativos da sociedade, adoro a lógica crua da matemática, sou fascinado pela mente humana, não paro de escrever e sonho em trabalhar no mercado financeiro. Mas também gosto da ideia de estancar um sangramento interno mortal na barriga de um candidato à presidência, mesmo que seja o único candidato que de forma alguma eu gostaria que ganhasse.

Parece que a gente tem uma tara com isso de achar a “profissão certa” para nós. Esses dias uma colega disse que não sabia se gostava mesmo de medicina ou se queria fazer outra coisa. Eu lhe disse que isso não importava, que se preocupar com isso era narcisismo. Ela se sentiu ultrajada:

Como assim, não importa? O trabalho que eu vou realizar o resto da vida, mais uns 40 ou 50 ou 60 anos não importa? E se eu não gostar mesmo de medicina? Vou ter que continuar fazendo isso, mesmo sem gostar, o resto da vida? Preocupar-me com meu bem-estar é narcisismo?

E eu lhe disse:

É!

O que importa se você não gosta do seu emprego? Você não trabalha para se satisfazer, você trabalha porque precisa. E daí que você não é feliz? A vida não serve para ser feliz, ela serve para ser vivida. Você pode até querer a felicidade, custe o que custar, mas pelo menos admita que isso é fruto de seu narcisismo desvairado.

E ela, claro, não concordou com essa insensatez, e chegamos a checar a definição de narcisismo na internet:

Narcisismo é o amor de um indivíduo por si próprio ou por sua própria imagem.

E ela continuou:

Quer dizer que você acha que se eu me preocupo comigo mesmo, a ponto de não querer ficar o resto da vida fazendo algo que não me agrada, isso faz de mim uma narcisista? Eu não posso escolher nada, então, que é narcisismo? Não posso escolher uma faculdade, pois isso já é narcisismo?

E eu lhe disse:

É!

A questão não é escolher ou não a faculdade: de alguma forma ou de outra temos que escolher. O problema é escolher com base no medo de um futuro triste e na esperança de um futuro feliz; escolher com base na autopreservação, no amor-próprio: no narcisismo. Não importa que curso você faça: não há razão para acreditar que você teria sido mais feliz fazendo outra coisa. Imaginar-se fazendo outra faculdade e comparar sua vida imaginária com a vida que você tem em mãos é estupidez. E é narcisismo.

Eu sempre penso essa mesma coisa quando alguém fala que tem vontade de fazer tatuagem, mas tem medo de se arrepender depois, ou de enjoar. Qual seria a fonte desse medo bobo, senão um culto desmedido a si próprio e ao próprio corpo? Se sua pele vai enrugar e cair, se seus cabelos vão perder a cor (e/ou cair), se seus telômeros vão se encurtar, seus olhos se entupirão de proteínas que opacificarão sua visão, se seus ossos se tornarão porosos, enfim, se o tempo lhe reserva o definhamento total de seu corpo físico e de suas faculdades mentais, por que se preocupar com uma imagem em um pedaço de pele? Por que você é tão importante assim? Você é realmente tão especial?

Uma tatuagem arrependida é apenas uma lembrança de que você já foi mais bobo do que é agora. A ausência da tatuagem é a lembrança de que, além de bobo, você era covarde.

A incerteza quanto ao “curso certo” que garantirá nossa felicidade futura tem a mesma base do medo do arrependimento de uma tatuagem: narcisismo.

E não é só nosso curso que importa: queremos achar o companheiro ideal, o trabalho ideal, a casa ideal, na cidade ideal. Até o tapete deve ser o tapete certo. Vivemos no constante medo de não nos agradarmos o máximo que poderíamos.

E aí, a gente tem medo de chegar no final da vida e se arrepender. Tememos nos arrepender de não ter amado mais, chorado mais e visto o sol se pôr. Tememos nos arrepender de não haver trabalhado menos e nos preocupado menos com problemas pequenos. Tememos nos arrepender de não ter morrido de amor.

Mas quando a gente encara a vida com a obrigação de fazer as escolhas certas (para ser feliz ou qualquer coisa), sempre vai haver razão para arrependimento. Porque sempre vai haver uma escolha não escolhida que tinha o potencial de ser melhor do que a que você escolheu.

Ser advogado é legal, mas se eu tivesse estudado letras…

Se eu tivesse me dedicado mais àquele projeto ao invés de ir para a praia…

Se eu tivesse voltado para casa em vez de ficar para ver o sol se pôr…

Se vivermos assim, no final, vamos nos arrepender de ter tido tanto medo de nos arrepender.

***

Gostaria de terminar com duas passagens, uma de Tyler Durden e outra de Zeca Pagodinho, com mensagens similares. Tente adivinhar quem disse qual:

1) Pare de tentar ser completo, pare de tentar ser perfeito. Vamos evoluir! Deixe que as coisas aconteçam como elas devem acontecer.

2) Deixa a vida me levar; vida leva eu!

19.04.10. A tatuagem, o vestibular e o arrependimento
Foto de Roberto Filho (2014).

***

It’s a blanket. Just a blanket.

10 comentários em “Medicina, tatuagem, dor e arrependimento

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  1. Nícolas Teixera Cabral, não te conheço pessoalmente , sei que podem soar palavras de uma narcisista que está apenas alimento o próprio ego , mas meu pai fez direito , também pensei em seguir o caminho dele ,algumas vezes acho que deeveria ter feito isso porquê ele ficaria feliz ,mas no final talvez realmente possamos ser melhores naquilo que amamos , melhores para mais pessoas do que nós mesmos.

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    1. Oi, Mariana! Obrigado pelo comentário.

      A questão do texto é que nós não sabemos o que nos fará feliz: nós somos péssimos em prever como nos sentiremos em relação às circunstâncias de nossa vida. Por isso, escolher estudar direito ou estudar medicina pensando se isso te fará feliz é um erro ético, segundo o argumento do texto.

      Também não é uma boa ideia fazer direito para agradar seu pai. É pior ainda, na verdade.

      Nossa busca deve ser por sentido. Felicidade é sorte.

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  2. E há tanta coisa que a gente gosta e não sabe que gosta , Só depois de experimentar ! … Há sempre incógnitas na procura da Profissão . Tb concordo que no caminho é que está o gozo …

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  3. Estou numa situação um pouco conturbada: faço Medicina e Administração ao mesmo tempo ( claro que eu sei que terei que escolher uma área), na verdade só voltei para Adm porque a faculdade me ligou dizendo que eu seria jubilado faltando 1 semestre para me formar já que havia trancado para fazer Med. Depois desse “microcontexto” vou ao que interessa: vi um comentário em um desses vídeos no youtube com título “Concurso Público ou Medicina?” no qual um rapaz disse ter feito Medicina e que iria bem na teoria, mas quando começou a prática ele afirma ter desenvolvido várias somatizações (depressão, ansiedade, etc) pois percebeu o que seu Ego não o deixava observar: que ele era RUIM naquilo! Não sei se era por falta de aptidão ou por estar fazendo por $, mas o ponto foi que ele afirmou que deveria ter seguido sua ESSÊNCIA. Minha pergunta é: existe essência? Como segui-lá? Ou esse rapaz simplesmente não aguentou o peso do curso? Segundo ele sua auto-estima foi para o lixo e hoje mal consegue ler um simples texto. Tenho medo de estar fazendo Medicina por outros motivos e ter destino semelhante.

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