Orgasmos, lagostas e o patriarcado

Tem uma passagem que eu li lá no ensino médio que eu lembro até hoje. Era Richard Dawkins falando sobre como os chefs de cozinha na TV chamavam as lagostas de “peixes”.

Quero dizer, acho que eles não pegavam a lagosta e diziam “agora você acrescenta o peixe”, referindo-se a ela. Provavelmente era mais algo tipo “eu gosto de lagosta, lula, atum, salmão… todo tipo de peixe”.

Acontece que, para um biólogo como Richard Dawkins, faz mais sentido dizer que o ser humano é um tipo de peixe do que dizer que a lagosta o é. Filogeneticamente, humanos e salmões são muito mais similares entre si do que salmões e lagostas.

Mas não tem problema falar que a lagosta é um peixe.  Ela mora no mesmo lugar que os peixes, tem odor semelhante ao dos peixes e é vendida em lojas que vendem peixe. A lagosta é um peixe com pernas para andar no fundo do mar. O camarão também é um peixe que anda no fundo do mar, só que pequeno, e o polvo é um peixe de braços. E por aí vai.

Para o chef de cozinha — e o cozinheiro amador que o assiste — pouco importa o que o biólogo acha que sabe.

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Recentemente recebi um post do Instagram que tentava explicar o que é a “ejaculação feminina” e como as mulheres são capazes de “ejacular” (isto é, “gozar”), mesmo sem ter um orgasmo. O título era: “Qual a diferença entre: gozar e ter um orgasmo?”.

Eu sei a diferença: nenhuma.

Não é uma questão de conhecimentos sexuais. Se fosse, eu realmente não saberia o que dizer. Mas é uma questão de linguística.

“Gozar” sempre foi (pelo menos desde que eu comecei a conversar sobre esse assunto) sinônimo — no limite de quão sinônimas duas palavras podem ser — de “ter um orgasmo”. Como, no caso do homem, o orgasmo está quase sempre cronologicamente e fisiologicamente ligado à ejaculação, “gozar” acabou tomando também o sentido de “ejacular”. Mas ele nunca perdeu o sentido de “ter um orgasmo”.

Por isso, podemos dizer “gozar na boca” tanto no sentido de “transbordar a cavidade oral de alguém com sêmen”, como no sentido de “ter um orgasmo enquanto a genitália está em íntimo contato com a cavidade oral de alguém”.

Gozar, ao contrário do que o post faz parecer, não quer dizer necessariamente “ejacular”. Gozar, na grande maioria das vezes, é o mesmo que “ter um orgasmo”.

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Na medicina, “perna” e “coxa” são conceitos bem definidos. “Coxa” é o que tem acima do joelho, “perna” é o que tem abaixo. Distinção básica.

Básica, mas desimportante para quase todo o resto da população. Todo mundo sabe o que é perna. Perna é o que te leva aonde você quer ir. É o que une o pé ao quadril. Só.

Eu não ligo que digam que gozar é o mesmo que ejacular ou que a lagosta é um peixe. Realmente não me importo. O que me incomoda é a prática muito comum de alguém chegar do nada e falar:

Você sabe a diferença entre “performance” e “sucesso”? Você consegue distinguir um “caramujo” de um “caracol”? É “amor” ou é “paixão”?

Como se houvesse uma diferença crucial entre os dois termos que é muito importante saber, mas você não sabe.

O que é improvável, se você for um adulto falante nativo do português.

Para o chef de cozinha — e o cozinheiro amador que o assiste — pouco importa o que o médico acha que sabe. E não ouse lhe dizer que a “coxa de frango” não é a coxa do frango.

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Jordan B. Peterson publicou um livro recentemente, chamado “12 regras para a vida: um antídoto para o caos”. A primeira regra de Peterson é “fique ereto e com os ombros para trás”. O capítulo fala sobre o aspecto inexoravelmente hierarquizado das sociedades humanas: hierarquias sociais naturalmente existem, pois fazem parte de nossa natureza.

Em seu argumento, Peterson cita as lagostas.

Lagostas não são animais tão complexos como humanos, aves e peixes — são artrópodes, “simples” como baratas e aranhas. E foi nessa simplicidade (ou antes), que se desenvolveu um mecanismo cerebral movido a serotonina especializado em ranquear a lagosta entre seus pares na hierarquia social.

Esse mecanismo, naturalmente, permanece nos seres humanos. Afinal, lagosta é peixe e peixes somos nós.

Ou seja, somos animais naturalmente inclinados a criar hierarquias sociais.

Ideias como essa, apesar de cientificamente bem embasadas, muitas vezes trazem “problemas” para Jordan B. Peterson, principalmente quando são analisadas no contexto maior de sua obra eminentemente conservadora. Não raramente, a história de que “humanos tendem a ranquear outros humanos em hierarquias sociais” e a crença de que “homens e mulheres não são iguais” se confundem com a defesa do patriarcado no mundo ocidental (o qual, segundo Peterson, não existe).

É claro que dizer que existem hierarquias entre lagostas e dizer que os homens devem dominar as mulheres não tem nada a ver.

E a diferença é bem mais clara do que a diferença entre gozar e ter um orgasmo.

19.08.01. Orgasmos, lagostas e o patriarcado.jpg
Não consegui achar foto de orgasmo.

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