Não limite sua compaixão

Tem um documentário novo no Netflix que vale muito a pena ver, sobre Bill Gates. Bill foi uma das pessoas que moldaram o início do século XXI, marcado pela revolução digital. Ele é um exemplo perfeito de outlier: descomunalmente inteligente, disciplinado, diligente, criativo, ambicioso, energético, entusiasmado, resistente a estresse e afeito a riscos. Mas a característica que eu mais admiro nele é sua obstinação em utilizar toda essa capacidade humana e financeira que ele tem para o bem geral da humanidade: erradicando a pólio, criando soluções em saneamento básico em áreas miseráveis, viabilizando formas alternativas de gerar energia etc.

Bill sabe que os sinos dobram por ele também. E ele faz parte da geração que vai mudar o mundo.

Perambulando pela internet, achei este artigo do Business Insider comentando um trecho do documentário em que o entrevistador pergunta a Bill Gates qual foi o pior dia de sua vida. Bill pausa por um momento e responde:

The day my mother died. O dia em que minha mãe morreu.

Como o texto do BI genialmente notou, lá estava o homem que conseguiu tudo que um homem pode sonhar em conseguir, uma pessoa definida pelo sucesso de sua empresa, mas que mesmo assim não respondeu:

“O dia em que Steve Jobs me acusou de tê-lo roubado”.

“O dia em que eu fui humilhado com uma torta na cara enquanto visitava líderes empresariais e políticos na Bélgica”.

“O dia em que eu tive que pagar mais de um bilhão de dólares em multa antitruste”.

Não.

O pior dia na vida dele foi o dia em que a mãe dele morreu.

***

Não é só sobre mães e filhos. É sobre as pessoas que amamos: filhos, pais, irmãos, primos, tios, amigos.

Afinal, o que embeleza a vida são as pessoas. Não importa se você acorda todo dia para lavar louças num restaurante ou se você dirige a empresa que está moldando o futuro da humanidade: no fim, o que importa mesmo é com quem você dividiu a estrada.

Não é o destino. Não é o carro. Não é nem a estrada. São as pessoas no banco passageiro.

Como dizia o poeta Alexandre Abrão: podem me tirar tudo que tenho, só não podem me tirar as coisas boas que eu já fiz pra quem eu amo.

***

Realmente não é só sobre mães e filhos, mas as mães são especiais. Porque esse título, “mãe”, é muito especial.

Nem todo mundo tem irmão. Nem todo mundo tem pai. Nem todo mundo tem amigo. Mas todo mundo tem ou teve em algum momento uma mãe.

As mães unem a humanidade.

***

Há poucos dias, uma pessoa muito próxima de mim descobriu que a mãe tinha uma doença grave, com risco de morte. Eu não conseguia parar de pensar que talvez ele estivesse a poucos dias do pior dia de sua vida. Isso é muito triste.

Mas não deixa de ser uma sorte também. Afinal, essa é a ordem natural das coisas: nascer, crescer, morrer. Naturalmente, pais e mães se vão antes de filhos e filhas.

Se a morte de uma mãe é devastadora…

Imagine a morte de um filho.

***

Um dos principais mitos sobre a condição humana que faz a cabeça de muita gente é o que diz que existem pessoas boas e pessoas ruins.

Pessoas são pessoas, capazes de fazer coisas boas e coisas ruins. E a maioria faz coisas boas a maior parte do tempo.

Tem uma música do Gabriel, o Pensador, que fala sobre o sofrimento do mundo, chamada Palavras repetidas. Eu amo essa música. Ela fala sobre violência e desespero em várias formas, mas também sobre como todos os seres humanos fazem parte nisso. Em Palavras repetidas, com a genialidade poética que lhe é característica, Gabriel simula um diálogo entre duas mães:

— Teu filho morreu? Meu filho também!
— Morreu assaltando.
— Morreu assaltado.

Para uma mãe que perdeu um filho, pouco importa se ele estava assaltando ou sendo assaltado. A tragédia é a mesma em qualquer uma das situações. E é a maior das tragédias humanas.

É claro que não se deve ser uma sociedade leniente e permissiva: os crimes devem ser punidos com os castigos devidos.

Mas é um erro crasso comemorar a morte de um assaltante. Ou de um assassino. Ou de qualquer um.

Comemorar a morte de um filho e o luto de uma mãe.

Punir, sim. Comemorar o sofrimento, não.

Afinal, a pessoa que assaltou também tem ou teve mãe.

Todos erramos e todos merecemos piedade. Não acredite no conto de que existem pessoas boas e ruins.

Não limite sua compaixão.

19.11.27. Não limite sua compaixão.jpg

2 comentários em “Não limite sua compaixão

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  1. Quem me conhece sabe que sou exigente c textos e crônicas
    Sinceramente este texto foi um dos melhores que vc escreveu
    Sinto que se vc colocasse uma pitada de niilismo nos seus textos com certeza ficariam mais humanos
    Certa vez corrigistes as minhas vírgulas que ao eu escrever colocava-as com as minhas pausas de narração internacionalmente
    Lembrei-me de João Cabral de Melo Neto que escrevia o sentir sem se preocupar c a programática da gramática hierárquica da língua portuguesa
    Ele escrevia emoções e sentimentos que no espelho dos leitores se manifestavam em suas mentes e corações
    E vdd que cada um sente de um jeito e ngm sente igual
    Então cada um tbm interpretava e sentia o que João Cabral escrevia
    A sua maneira
    Deixando o texto livre
    Isso é mágico tbm
    Isso é clássico no niilismo
    Hj deixo meus elogios e Feedbacks
    Sem pontos e sem vírgulas rs
    Até
    Att
    PF

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  2. Prezado NÍCOLAS TEIXEIRA CABRAL

    fico-lhe grato pela visita à minha página UAÍMA, e pelo “seguir”. Junto a isso, parabenizo-o pela sobriedade de seus textos em geral, eivados de busca, de profundidade social, e de onde o humor
    não fugiu.

    Quanto ao Bill Gates, um construtor de pontes, muito embora sempre altos os muros e anchas e traiçoeiras as correntezas dos rios de lava que nos afetam a todos, sim, temos empecilhos postos à frente de todos nós, ele se mostra de fato alguém cujo caráter é mesmo o de não se acomodar, daí que essa frase estonteante, mas absolutamente natural para quem entende de fato de valores, lhe tenha escapado quando perguntado acerca de qual teria sido o pior dia de sua vida: “The day my mother died.” Minha mãe, único tesouro real de todos, está com 87 anos – lépida, canta, faz tricô e crochê, pinta telas a óleo, borda panos de prato, faz compras, e ainda acha tempo para cantar as canções de sua época e, naturalmente, as do Clube da Esquina. Vou junto, no violão.

    Um abraço, muito obrigado pela visita. Apareça.
    Darlan M Cunha

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