Cazuza foi o primeiro artista do qual gostei de verdade. Ninguém na minha escola gostava, meus pais odiavam, meus amigos não sabiam quem era. Eu tinha nove anos e uma prima mais velha me falou desse filme, de um cara muito louco, que descobriu uma doença horrível e saiu correndo por entre os carros, mastigando o resultado do exame positivo na boca.
Minha mãe não me deixou ver o filme. Assisti sozinho alguns meses depois, na casa de uns amigos. Me apaixonei por Cazuza. Comprei a trilha sonora do filme, depois uma coleção da Millenium, depois passei a ouvir suas músicas pelo incipiente YouTube.
Cazuza sucumbiu a uma das doenças mais temidas da humanidade. Em meio à pandemia do COVID-19, é tentador fazer um paralelo com a pandemia do HIV/AIDS.
O Sars-CoV-2 provavelmente surgiu na China. Lá existe um reservatório natural desse tipo de vírus, que são os morcegos. Os vírus são transmitidos entre os animais e sofrem mutações frequentes. O ser humano caça e abate morcegos. Os vírus entram em contato com o ser humano e conseguem infectá-lo. Eventualmente, um vírus tem mutações que o tornam especialmente bem sucedido em infectar o corpo humano. Ele se espalha entre os humanos que visitam o mercado de frutos do mar. A pandemia começa.
O HIV surgiu de forma parecida, lá nas florestas do Congo. O neocolonialismo europeu na África no início do século passado forçou os nativos cada vez mais para dentro das florestas. Enquanto suas áreas cultiváveis eram tomadas pelos brancos, eles se alimentavam cada vez mais de animais selvagens, incluindo macacos.
Os macacos têm uma relação de centenas de milhares de anos com o vírus da imunodeficiência símia (SIV). Eles infectam os macacos e causam uma síndrome gripal, mas nada muito além disso. Os macacos estão acostumados com esse parasita.
Os humanos caçadores de macacos, por outro lado, não. O hábito de caçar e abater macacos dá grandes oportunidades para que o SIV no sangue do animal entre em contato com uma mucosa ou uma ferida aberta na pele do caçador. O SIV não é tão competente para infectar o organismo humano, mas ele é um mutante nato. Eventualmente, o vírus acumula mutações que o tornam razoavelmente competente em infectar seres humanos. Surge o HIV.
“O” HIV é forma de falar. A transformação do vírus símio para o vírus humano aconteceu pelo menos em quatro ocasiões diferentes, cada um vindo de um tipo de macaco diferente, dando origem ao HIV-2 e ao HIV-1 e seus vários subtipos.
Isso provavelmente ocorreu na década 1910. O HIV-1 tipo M chegou a Léopoldville e se espalhou entre os trabalhadores das ferrovias e as prostitutas da cidade, ambos grupos com altas taxas de sífilis e gonorreia, o que facilitou sobremaneira que o vírus se espalhasse. Dali, foi para a Europa e para o Haiti, e depois para os Estados Unidos. Nos Estados Unidos, chegou à cena gay das grandes metrópoles americanas — o vírus gosta de lugares onde tem muita gente, fazendo muito sexo.
O primeiro sinal de que havia algo estranho acontecendo foi por causa de casos atípicos de pneumonia — igual aconteceu com o Sars-CoV-2. No caso do HIV, não era o vírus em si que causava pneumonia, mas ele destruia células de defesa do organismo, o que possibilitava que homens jovens e saudáveis de repente se vissem acometidos por pneumocistose, uma pneumonia fúngica que raramente se desenvolve em indivíduos de boa saúde.
A epidemiologia está sempre um pouco atrasada. Quando notaram esses primeiros casos, a princípio em Los Angeles, depois New York, já havia milhares de pessoas infectadas nos EUA e no mundo. Isso acontece, entre outras razões, porque é possível que uma pessoa transmita o agente causador da doença sem saber que está doente.
No caso do Sars-CoV-2, parece ser possível que a pessoa que não tem sintoma nenhum transmita o vírus: pode ser porque ela ainda não desenvolveu a doença ou porque ela não vai desenvolver sintomas mesmo. Mas o período de transmissão assintomática parece ser curto (poucos dias a semanas).
No caso do HIV, é bem diferente. Uma pessoa pode contrair o vírus e ficar mais de dez anos assintomática. Ela acha que é saudável, mas o vírus vive no seu corpo e infecta outras pessoas, caso tenha a oportunidade.
Por isso, o HIV demorou décadas para se manifestar na forma de pandemia. Quando percebemos que algo de errado não estava certo, o vírus já estava nos cinco continentes e já havia feito várias vítimas.
Cazuza foi o primeiro brasileiro a assumir a doença. Foi cruelmente estampado na capa da Revista Veja, com a chamada de que Cazuza “agonizava em praça pública”. Quando questionado sobre seu estado de saúde, pouco antes de morrer, Cazuza disse: “segundo os exames, está tudo bem; mas posso morrer amanhã”.
Cazuza hoje completaria 62 anos de idade. Em um país onde a ministra dos direitos humanos recomenda abstinência sexual como política pública para evitar a gravidez na adolescência e o presidente do país chama a pandemia de “gripezinha”, Caju faz falta.
Cazuza, vamos pedir piedade pra essa gente careta e covarde. Você daí e a gente daqui.

Vamos ver se eu entendi: Um playboy que nunca na vida dela fez nada pelos outros, só para si mesmo, que ajudou a financiar a indústria do tráfico de drogas para se divertir, que batia na mãe e nas namoradas e que praticava e pregava a total irresponsabilidade nos seus atos seria melhor para o país do que uma ministra que (e eu não compartilho da fé dela) quer combater o sexo na adolescência (o despertar precoce da sexualidade e a gravidez na adolescência são, de forma comprovada por estudos no mundo todo, intimamente ligados à pobreza e a problemas em estabelecer um relacionamento fixo no futuro) e um presidente que, com todos os erros que possa ter, melhorou de forma radical a possibilidade de manifestação do empreendedorismo no país, manteve por mais de um ano seguido auxílio financeiro mensal para uma enorme parcela da população (algo que pouquíssimos países fizeram e, na faixa de população e PIB do Brasil, só ele), que levantou pontos que até hoje não foram explicados por nenhuma autoridade da OMS (como o porquê de medidas restritivas tão severas no caso da COVID-19, uma doença com taxa de mortalidade abaixo dos 2%, que não foram aplicadas quando das epidemias de H5N1, gripe suína e ebola, todas doenças com taxa de mortalidade muito mais alta que a da COVID).
Não meu amigo, o problema não está no país, está na tua hierarquia de valores. Nem o presidente Bolsonaro e nem a ministra Damaris são perfeitos, santos ou heróis, mas que eles fizeram muito mais do que o Cazuza alguma vez fez ou quis fazer para o Brasil, isso eles fizeram. Não que isso seja um grande elogio. Qualquer um que simplesmente não prejudique as pessoas a sua volta ou divulgue ideias e comportamentos que comprovadamente levam ao crime, a doença ou à morte já vai estar fazendo mais do que o Cazuza pelo país.
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Entendeu perfeitamente, Marcos. Obrigado pelo comentário!
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