Este texto é o roteiro da palestra que eu dei no MED Talks 2019, em novembro de 2019. Reproduzo aqui tal qual escrevi na época, em formato de “roteiro de aula”.
Não ficou tão bonito, mas o conteúdo está legal.
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Boa noite, pessoal. Última palestra da noite, eu vou falar com vocês sobre a origem de uma das doenças mais emblemáticas da nossa sociedade, o símbolo de uma geração, uma chaga que aterrorizou o mundo inteiro e continua aterrorizando: o HIV e a AIDS.
A AIDS mexe com coisas que são muito humanas, muito preciosas à vida humana.
Primeiramente, a morte. Lá no começo dos anos 80, 40% dos acometidos morriam. Quarenta por cento! Imaginem. E eram apenas homens, jovens, previamente saudáveis. 40% deles eram internados com as doenças oportunistas e o sarcoma de Kaposi e simplesmente não saíam…. Saíam direto para a autópsia, né?
Outra coisa, preconceito. A AIDS é até hoje, mas já foi muito mais, um combustível para o preconceito contra alguns grupos da sociedade. A AIDS, infelizmente, serviu muito bem à homofobia. No começo, a doença era chamada GRID (gay-related immunodeficiency), o NY Times publicou um artigo em maio de 1982 com essa expressão, que era expressão comum na boca do povo. Os primeiros 100 casos mais ou menos, eram todos, TODOS, de homens jovens homossexuais, TODOS — mais ou menos os 100 primeiros casos. Então, imaginem a histeria. Depois ela serviu à discriminação contra os usuários de drogas também, depois ao racismo, contra os haitianos. E até hoje o HIV carrega um estigma social que nem precisa falar, a gente aqui sabe como a nossa relação com essa doença é conturbada, né?
Por fim, sexo. Eu tenho comigo que muita dessa aura de maldição do HIV vem de ele ser sexualmente transmissível. Afinal, a sexualidade humana é tão valorizada, tão importante nas nossas vidas… E aí eu lembro de um verso de um dos maiores símbolos da AIDS no Brasil, o cantor Cazuza, meu ídolo, que escreveu na música Ideologia: “o meu prazer agora é risco de vida”.
Então, sem dúvidas, é um assunto que mexe com a gente.
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A epidemia de AIDS que a gente vive tem local e data de nascimento: Los Angeles. Cinco de junho de 1981.
Foi em 05 de junho de 1981 que o CDC (Centers for Disease Control and Prevention), um órgão sanitário americano, publicou um relatório descrevendo o caso de cinco homens, jovens, previamente hígidos, todos homossexuais, que haviam adquirido uma forma pouco usual de pneumonia, a pneumocistose, que é uma pneumonia fúngica, causada pelo Pneumocystis jirovecii. Isso era muito estranho, porque a pneumocistose era uma doença de velhos, débeis, imunossuprimidos, não de homens jovens saudáveis. Isso acendeu uma luz na cabeça deles.
Nos meses seguintes, mais casos foram aparecendo: doenças oportunistas e sarcoma de Kaposi. Sempre homens jovens, previamente saudáveis. Como eu disse, os primeiros cem casos mais ou menos eram todos de homens homossexuais, depois começaram a aparecer homens heterossexuais e mulheres. Eles perceberam que, entre os heterossexuais, havia uma proporção significativa de usuários de drogas injetáveis.
Em junho de 1982, um ano após o relatório histórico do CDC, já são 355 casos. Aqui, já se sabia que a doença atingia homens e mulheres heterossexuais, mas a maioria dos casos ainda eram em gays. Um mês antes disto o NY Times publicou o artigo com o termo GRID, lembram?
Até aqui, a nova chaga era doença de gay e usuário de heroína.
Julho de 1982: infecções oportunistas e sarcoma de Kaposi em haitianos. Quase todos heterossexuais e não usuários. Um novo grupo se junta à epidemiologia: imigrantes haitianos recém-chegados aos EUA. Depois, as investigações vão concluir que o Haiti tinha vários casos de SK nessa época, e foi a partir de lá que o vírus chegou nos EUA.
Finalmente, ainda de julho de 1982, o CDC relata a presença de infecções oportunistas em hemofílicos que receberam transfusão sanguínea. É o quarto grupo epidemiológico da AIDS, o primeiro grupo “inocente” da epidemia. Juntos, eles foram o grupo 4H: homossexuais, usuários de heroína, haitianos e hemofílicos.
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Certo, então a epidemia surgiu em junho de 1981, em Los Angeles, mas com certeza o vírus já estava em circulação antes. Como o HIV surgiu?
Tudo começou aqui, na África central e ocidental. Início do século XX. Tem um fenômeno acontecendo aqui, pré-Primeira Guerra, que é o neocolonialismo. As potências europeias estão colonizando essas áreas e, acredite ou não, isso tem a ver com o surgimento do HIV.
Mas vamos por partes.
Com certeza, há muitos humanos vivendo aqui, em cidades coloniais, mas também em vilas e em pequenas comunidades tradicionais africanas, às vezes no meio das florestas. E há muitas florestas por aqui. E há várias espécies de primatas vivendo nessas florestas.
A principal teoria é que o HIV surgiu a partir do SIV, o vírus da imunodeficiência símia, um vírus semelhante ao HIV que atinge vários primatas dessa região: mangabeis, chimpanzés, gorilas.
O SIV, assim como o HIV, é um retrovírus. Ele possui uma enzima chamada transcriptase reversa, que faz a transcrição reversa, que é a produção de DNA a partir de RNA. Esse é um processo muito tendente a erros, e essa é uma das causas do HIV e também do SIV serem vírus que têm uma taxa de mutação muito alta. Ou seja, o SIV tem várias oportunidades de acumular mutações que o tornem próspero no organismo humano, certo?
Estima-se que o SIV tenha “pulado” a barreira da espécie pelo menos quatro vezes, dando origem a pelo menos três sorotipos de HIV-1 e ao HIV-2, cada um deles “derivado” de sorotipos diferentes do SIV, que infectavam animais diferentes:
O mangabei.
O gorila.
E o chimpanzé. O SIVcpz do chimpanzé foi o que deu origem ao HIV-1 M, responsável por 90% dos casos na epidemia atual.
Certo… Mas como que o SIV/HIV passou para os seres humanos?
Muita gente acredita que foi pela zoofilia, já que uma das principais formas de transmissão do vírus é sexual, e já que humanos não dividem agulhas com macacos, nem fazem transfusão sanguínea de sangue de macaco, nem gerem e dão à luz macacos.
Mas não foi.
O SIV passou pelos humanos através do chamado “bushmeat”, a prática de caçar animais silvestres. Durante a caça e o processamento da carne desses animais, gotículas de sangue do macaco infectado podem ter entrado em contato com feridas abertas ou mucosas de caçadores humanos, causando a infecção destes.
E é aqui que eu começo a voltar naquela história de neocolonialismo. Os europeus chegaram na África e tomaram as áreas produtivas dos africanos. Os africanos não plantavam na floresta, então eles começaram a buscar fontes alternativas de alimento: macacos selvagens, por exemplo. É claro que isso já acontecia, mas isso se intensificou com a chegada dos europeus e a impossibilidade de cultivar terras.
Consequentemente, claro, a infecção pelo SIV/HIV se intensificou também. E a infecção também passa de humano para humano. Em algumas comunidades da África, até 10% das pessoas eram infectadas pelo SIV.
Com tantas pessoas infectadas e um ritmo de mutações acelerado, era questão de tempo para que o SIV fosse selecionado para viver no organismo humano, tornando-se o HIV.
Só que, ainda assim, algumas coisas ficam mal explicadas. O HIV é um vírus de transmissão difícil (4 em 10.000 contatos heterossexuais insertivos); como ele se espalharia o suficiente para começar uma epidemia? A resposta, novamente, está no neocolonialismo.
Os impérios europeus fundaram na África grandes cidades coloniais. A urbanização é outro dos fatores que favoreceram o espalhamento do HIV no início do século XIX. O ancestor comum mais recente do sorotipo M do HIV-1 surgiu por volta de 1908 em Léopoldville (atual Kinshasa). O ambiente da cidade teria facilitado enormemente o espalhamento desse vírus: muita gente junta, muitos trabalhadores para as ferrovias (homens sem esposas), a superação dos costumes monogâmicos tribais etc.
Era assim a Kinshasa do século XX: muita gente, muita prostituição e muitas feridas genitais.
Muitos homens vieram para trabalhar nas rodovias, sem suas esposas: esse ambiente com alto número relativo de homens favorecia a prostituição. Em 1928, estima-se que até 45% das mulheres de Léopoldville fossem prostitutas.
A presença de úlceras genitais é outro fator importante, pois pode aumentar a probabilidade de transmissão em até três ordens de magnitude. Estima-se que, por volta de 1935, 11% dos residentes de Léopoldville portassem alguma forma de sífilis.
Muitos trabalhadores das colônias europeias na África eram europeus. Eles contraíram o vírus na África, voltaram para a Europa e contaminaram seus conterrâneos lá. Outros eram haitianos e voltaram para o Haiti. De lá foram para os estados Unidos e o vírus entrou na comunidade gay das grandes metrópoles americanas. Depois se espalhou entre usuários de cocaína injetável.
Em 1981, quando o CDC publicou seu icônico relatório de cinco gays com pneumocistose, o HIV já infectara milhares de pessoas no mundo inteiro.
Li quase todos os seus textos do blog e do Instagram e só vim te parabenizar e te culpar por roubar umas 3 horas do meu domingo que passaram como se fossem 10 minutos 😂.
Perfeitos, literalmente. Arte tem que causar algo e seus textos causam algo, é fato. Fico muito feliz de ver alguém como vc na medicina, inspirador.
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Hahahahaha. Muito obrigado, fico feliz que tenha gostado. Continue vindo aqui perder tempo comigo.
Aliás, falando em perder tempo, tá vindo uma novidade aí chamada Tempo Perdido. Fica de olho.
Obrigado pelo comentário. =)
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