Autodeclarações e tribunais raciais

Os protestos contra racismo e violência policial que se iniciaram nos Estados Unidos chegaram ao Brasil e reacenderam o debate público sobre cotas raciais. Esse é um assunto que intermitentemente sobe em popularidade no Brasil já há vários anos e que sempre escancara o que há de pior nos debates públicos: polarização extrema, ataques pessoais e supersimplificação de uma problema supercomplexo.

Dada a complexidade da questão, vou me ater a um aspecto bem pontual dela: como julgar se alguém pode entrar por cotas ou não?

Tenho visto nas redes sociais muitas críticas dirigidas a pessoas que teriam “fraudado” as cotas e até uma discussão sobre como puni-las por isso. Eu não tenho cem por cento de certeza, mas creio que na época em que eu prestava vestibular (2012-15) as cotas raciais dependiam exclusivamente da autodeclaração.

Se isso for verdade, é impossível dizer que alguém fraudou o sistema.

Você pode discordar que a pessoa loira de olhos azuis seja negra ou parda, pode considerar um vício moral ela ter concorrido por cotas, pode expor a pessoa nas redes sociais, parar de falar com ela etc., mas você não pode dizer que ela “fraudou as cotas”, pois, se o sistema é baseado na autodeclaração, qualquer pessoa pode se autodeclarar literalmente qualquer coisa.

E é isso. Se alguém entrou na universidade por cotas baseadas na autodeclaração e isso era previsto no edital do concurso, a pessoa tem direito adquirido à vaga, no sentido técnico jurídico mesmo. Cassar a vaga dessa pessoa com base na consciência coletiva posterior que percebeu estupidamente tarde que basear cotas em autodeclaração era uma ideia ruim é um absurdo.

Se a autodeclaração isoladamente parece uma má escolha (porque literalmente qualquer um pode se autodeclarar negro ou pardo ou indígena e não há nada que se possa fazer nesse caso), a alternativa não parece muito melhor: ter uma comissão que decidirá quem cumpre os critérios para ser considerado negro ou pardo ou indígena. Um tribunal racial em pleno século XXI.

Uma forma de “controlar” a autodeclaração seria a coerção social. A própria sociedade seria hostil com aqueles não-negros que tivessem utilizado cotas raciais. É uma solução precária.

O tribunal racial poderia criar critérios específicos para determinar a “raça” de cada indivíduo, mas isso não evitaria os falsos-positivos nem os falsos-negativos completamente. As polêmicas do tipo “esta pessoa branca entrou por cotas” e “esta pessoa parda não foi aceita pelas cotas” seriam repetidas a cada semestre, sem exceção. Até irmãs gêmeas estariam sujeitas a serem consideradas pessoas de “raças” diferentes, o que é uma abominação.

A dificuldade inerente à classificação de pessoas por raças não é necessariamente um argumento contra a política de cotas. Eu nem entrei nessa discussão, aliás. Para mim é muito claro que existe discriminação social de pessoas negras e pardas. Mas ninguém checa se a vítima da discriminação preenche critérios fenotípicos determinados pelo STF nem se ela se autodeclara negra. Sem dúvidas, determinar se alguém merece ou não cotas por um desses critérios nunca será completamente justo. O que se deve fazer é tentar determinar qual é o menos injusto deles. Sobre isso, Thomas Conti faz considerações importantes aqui.

Essa discussão está apenas começando.

Um comentário em “Autodeclarações e tribunais raciais

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  1. Se liga: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2020/06/05/interna-brasil,861310/com-o-objetivo-de-denunciar-racismo-perfil-acusa-indigena-de-fraudar.shtml

    Foi esse o ‘estopim’ que me fez parar de usar minha conta social no Twittter. Criaram um ‘tribunal’ pra isso. E nessa rede social ocorre meio que o inverso da Constituição: todo mundo é CULPADO até que se prove o contrário. Sei que não tem muito a ver com a temática do texto,mas me recordei disso. Enfim,um assunto realmente complexo.

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