Este texto faz parte de uma série de posts sobre epistemologia, determinismo causal, livre arbítrio, psicologia comportamental e um pouquinho de neurobiologia.
Os outros textos são estes:
Nossas escolhas já foram feitas: o mundo segue o mandamento de eternas leis naturais que não permitem exceção; o destino do universo foi selado logo que ele surgiu.
A alucinação fisiológica dos olhos: como nossos sentidos nos enganam e distorcem a “realidade”.
Determinismo causal e livre arbítrio: nosso comportamento segue uma receita e não há espaço para acrescentar nada nela; não há livre arbítrio, mesmo em um mundo não-determinista.
Ideias como ferramentas para agir no mundo: algumas consequências práticas do determinismo causal e uma sugestão para superar o niilismo que o acompanha.
Escolhas e crimes, e compaixão: o mundo é determinista e nós não temos escolha, mas nós permanecemos moralmente responsáveis pelos nossos atos.
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É muito agoniante pensar que nós não sabemos nada sobre nós mesmos, mas é verdade. As estórias que você conta sobre si mesmo são apenas isto: estórias, interpretações das informações que você tem em mãos agora. Não há quase nenhum contato com a realidade de fato.
Nós gostamos de pensar “por que fiz isto, por que fiz aquilo” e criamos justificativas para nossas ações, mas essas explicações muito provavelmente são fantasiosas. São apenas estórias.
Seres humanos são péssimos em relacionar causas e efeitos. Por conta de vários vieses cognitivos, confundimos temporalidade com causalidade, retorno à média com efeito real, ruído com informação. Acreditamos que somos capazes de explicar coisas que são completamente fora de nossa alçada.
As estatísticas de daytrade no Brasil exemplificam isso. Pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas coletaram dados de quase 20 mil pessoas que começaram a operar contratos de mini-índice futuros daytrade entre 2013 e 2015. Dessas, apenas 1.500 pessoas operaram mais de 300 dias ao longo de cinco anos — ou seja, apenas 1.500 operaram de forma “séria” e semelhante ao que poderíamos considerar “profissional”. Das 1.500, apenas 45 pessoas não perderam dinheiro. Das 45 pessoas que ganharam, apenas 13 ganharam mais de 300 reais por dia. Trezentos reais por dia em um mês de 20 dias úteis dá 6.000 reais. É dinheiro, mas não é o que as pessoas acham que vão ganhar quando começam a operar daytrade — uma atividade difícil, arriscadíssima, extremamente técnica (teoricamente), muito estressante e que demanda insumos caros que não foram colocados na conta. Apenas uma pessoa entre as 20 mil ganhou mais de mil reais por dia de atividade.
Os pesquisadores ainda notaram que o padrão de ganho e perda nas operações de daytrade se assemelhava àquele de um jogo de azar: no começo, as pessoas ganhavam mais, mas quanto mais elas jogavam, mais difícil era manter ganhos consistentes. Aspirar viver de daytrade é como aspirar viver de jogos de azar.
O problema é que muita gente não sabe isso, e por isso jogam: porque acham que são capazes de prever os movimentos da bolsa. Não são. A bolsa é um sistema extremamente complexo — julgar-se capaz de captar e processar informações com acurácia e rapidez suficiente para prever as tendências do mercado e acertar consistentemente em apostas de curto prazo é quase tão insensato quanto julgar-se capaz de construir um foguete e chegar à lua sozinho.
Mas a economia não é a única área em que supervalorizamos obscenamente nossa capacidade de entender e prever fenômenos. Nós fazemos isso com a nossa própria psicologia.
Um exemplo gritante é a facilidade com que pessoas atribuem padrões de comportamentos próprios à posição dos astros durante seu nascimento. Eu conheço uma porção de pessoas bem educadas que acreditam veementemente nessa possibilidade, facilmente desacreditada por qualquer análise com o mínimo homeopático de pensamento crítico. Este simples fato deve ser suficiente para convencer qualquer um que o ser humano, em geral, não faz ideia da razão pela qual se comporta como se comporta.
Esse erro de cálculo é menos gritante em outros contextos. Imagine, por exemplo, que você tenha que adivinhar o peso de uma esfera que você nunca viu — você não sabe seu tamanho, o material da qual ela é feita, se é oca ou maciça etc. Você tende a dizer números maiores, se antes de dar a resposta você for exposto a números maiores — ou seja, se uma pessoa junto a você, que não tem nenhuma informação adicional sobre o objeto, chutar “mil toneladas”, você tende a dizer um número mais alto do que diria se essa outra pessoa chutasse “dez gramas”, porque você usa o chute dessa pessoa como uma espécie de ponto de partida para sua estimativa, ainda que do ponto de vista lógico isso não faça sentido. O nome desse viés é ancoragem.
Existem milhares de exemplos como esses, que nos mostram como somos traídos pela própria consciência. Outro viés importante é o erro fundamental de atribuição: tendemos a atribuir nossos próprios erros a circunstâncias contextuais, enquanto atribuímos os erros alheios a desvios de caráter. Se eu furei o sinal, é porque eu estava com pressa; se ele furou o sinal, é porque não tem respeito à coletividade. Nós não conseguimos aceitar que, no fundo, temos uma capacidade extraordinária de sermos maus.
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Eu estou dizendo tudo isso porque recentemente publiquei estes textos explicando como nossas escolhas já foram feitas e como o livre arbítrio não existe e vi que somos extremamente hesitantes em admitir a possibilidade de que nossas próprias escolhas não sejam, na realidade, nossas, mas totalmente fruto de determinantes que estão muito além de nosso controle. Mas essa é uma possibilidade possível demais para não ser considerada.
Não surpreende que nós sejamos tão fortes na nossa convicção de controle. Afinal, nós fazemos o que queremos, e isso é inegável. Eu estou sentado escrevendo este texto, mas posso escolher me levantar agora. Só que não quero. Você está lendo este texto, mas pode levar o mouse ao xis e fechar esta aba agora. Só que não quer.
A questão não é por que você faz o que você faz; é por que você quer o que você quer.
E eu adianto que você não sabe, mas você vai inventar mil e uma estórias para explicar esses desejos, e convencer a si mesmo de que sabe. Eu decidi terminar o texto porque estava interessante, decidi estudar psicologia porque gosto de estudar a mente, decidi terminar meu namoro porque sou aquariano, e toda sorte de explicação irracional para comportamentos cujas origens estão totalmente fora do seu radar, tão fora que você não consegue nem imaginar.
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Nós temos o talento de criar mentalmente futuros alternativos e isso nos dá a (falsa) impressão de que realizar um desses vários futuros é algo que simplesmente escolhemos: eu posso checar meu celular, posso abrir uma cerveja, posso sair para correr, posso tirar uma soneca etc.; mas não quero, neste momento, quero apenas terminar este texto.
Os filósofos costumaram-se a explicar esse ponto comparando o ser humano com coisas sem consciência. Imagine, por exemplo, uma gota de água em um copo. Essa gota de água sabe que pode evaporar (a cem graus Celsius), que pode correr morro abaixo (no leito de um rio), que pode flutuar nas alturas (sendo parte de uma nuvem), que pode ficar sólida (abaixo de zero grau Celsius) e que pode fazer ondas (numa tempestade no meio do mar). Mas agora, enquanto lê este texto dentro de seu copo, ela quer ficar ali e ser apenas uma gota parada em um copo.
A ideia da gota de água de que ela pode fazer tudo aquilo, mas não quer, e por isso escolheu repousar serenamente no copo de água, advém de sua profunda ignorância sobre os determinantes que permitem que ela possa evaporar, solidificar, flutuar ou fazer ondas. Ela não sabe quais são as condições que fazem com que ela evapore, então ela apenas supõe que pode evaporar quando ela sentir vontade de evaporar.
Da mesma forma, nós não sabemos quais são os determinantes que nos compelem a cada ação, então supomos que fazemos as coisas “porque queremos”. Mas continuamos completamente ignorantes quanto aos motivos que nos levaram a “querer” aquilo naquele momento.
A “escolha pessoal” é apenas uma explicação a posteriori que nossa consciência cria para explicar (sem base na realidade fática) a razão de fazermos o que fazemos.

O que você acha?