Pandemias em paralelo: COVID-19 e AIDS

Metade de 2020 já passou. Coletivamente, talvez seja o semestre mais atípico que esta geração viveu. Mais atípico que a epidemia de H1N1 em 2009, mais atípico que o tricampeonato mundial em 2005, mais atípico que o pentacampeonato em 2002, mais atípico que os atentados de 11 de setembro.

Vivendo no meio deste turbilhão, não pude deixar de reparar algumas coincidências entre a epidemia que estamos vivendo há seis meses e a epidemia que estamos vivendo há quatro décadas. É surpreendente a quantidade de semelhanças que podemos encontrar entre a COVID-19 e a AIDS.

O animal

O SARS-CoV-2, o vírus responsável pela COVID-19, supostamente surgiu a partir de coronavírus que infectam morcegos na China. Não sabemos ainda se houve um hospedeiro intermediário entre morcegos e homens, como houve o camelo em 2012.

Semelhantemente, o HIV provavelmente surgiu de vírus que infectam macacos na África centro-ocidental. Há centenas de milhares de anos, primatas de diversas espécies convivem com uma porção de vírus denominados SIV (vírus da imunodeficiência símia). Eles parecem ser os ancestrais do HIV.

Há diversos tipos de SIV, cada um especialmente selecionado para cada tipo de macaco. Também há diversos tipos de coronavírus, alguns que infectam humanos e vários outros que infectam outros animais.

Agora, imagine uma população de morcegos na China. São muitos morcegos. E vários deles estão infectados com coronavírus, e esses vírus estão constantemente se replicando. São centenas de bilhões, trilhões de partículas virais em circulação a todo momento. A replicação viral é um processo maravilhoso, mas que pode dar errado. Quando há essa quantidade imensa de vírus se multiplicando, com certeza alguma hora ele vai dar errado. Na verdade, muitas vezes. Muitas, muitas vezes.

A maior parte do tempo esses erros serão deletérios. Essa é a tendência natural do mundo: se desconstruir. É a entropia da última pergunta de Isaac Asimov. Porém, com tantos vírus, tantas replicações e tantos erros, eventualmente o erro na verdade será um acerto. O erro de replicação viral aumentará as chances do vírus sobreviver e se espalhar. Sorte para o vírus, azar do hospedeiro.

Esse contexto dos coronavírus nos morcegos da China em 2020 é semelhante à situação do SIV nos macacos africanos no início do século XX: muitos macacos, muitas partículas virais, muita replicação. Para piorar, o SIV é um retrovírus, assim como HIV. Retrovírus são vírus peculiares: eles sintetizam DNA a partir de um RNA modelo, contrariando o que era chamado de dogma central da biologia molecular. Eles conseguem fazer isso usando uma enzima chamada transcriptase reversa.

É importante saber que a transcriptase reversa não é uma enzima confiável: ela erra muito. Ou seja, são muitas chances de surgirem mutações durante a replicação viral. A maioria das vezes essas mutações serão ruins para o vírus. Mas eventualmente ela o ajudará a sobreviver e se espalhar, para azar do hospedeiro.

A caça

O contato próximo de vários humanos com esses animais, supostamente no mercado de frutos do mar de Wuhan, mas isto é incerto, deu muitas chances para que vírus particularmente bem adaptados para viver em pessoas conseguissem de fato infectar o homem e se espalhar na comunidade. Eu não consegui achar informações confiáveis sobre como o coronavírus teria cruzado a barreira da espécie: se seria por via aérea, ou pelo consumo de carne, ou pelo contato de mucosas e feridas abertas com o sangue infectado dos animais.

No caso do HIV, o vírus também teve a oportunidade de cruzar a barreira da espécie devido ao costume humano de caçar e comer animais selvagens, também conhecido como bushmeat. Popularmente, quando se diz que o HIV veio dos macacos, as pessoas inicialmente imaginam que isso tenha acontecido por via sexual. Provavelmente não foi o que aconteceu. O SIV infectou o ser humano a partir do contato de sangue símio com uma mucosa ou ferida aberta no caçador humano.

Agora entra outra coisa muito interessante: os coronavírus já pularam a barreira da espécie antes. Houve a MERS em 2012 e a SARS em 2012, sem contar com os outros coronavírus que infectam o ser humano. Não existe apenas um coronavírus.

Igualmente, o SIV cruzou a barreira da espécie pelo menos quatro vezes, dando origem a diferentes subtipos de HIV-1 e ao HIV-2. Cada HIV veio de um macaco diferente: o HIV-1 subtipo M, maior responsável pela pandemia atual de HIV/AIDS, veio de chimpanzés, enquanto gorilas e mangabeis nos presentearam com os outros sorotipos.

A pneumonia

Em meados de dezembro de 2019, médicos chineses de Hubei começaram a perceber algo estranho: pacientes com pneumonias atípicas, sem causa certa. Um lavado bronquiolar foi enviado para análise e o resultado, em 27 de dezembro de 2019, confirmou um tipo diferente de coronavírus. Em 31 de dezembro de 2019, a comissão municipal de saúde de Wuhan comunicou ao mundo 27 casos de pneumonia de origem indeterminada.

31 de dezembro de 2019, portanto, é a data oficial do nascimento da COVID-19.

A epidemia de AIDS também foi descoberta pelos pulmões. Em maio de 1981, médicos de Los Angeles também perceberam algo estranho: pacientes com pneumonias atípicas. No caso, eles sabiam qual era o agente causador: um fungo chamado Pneumocystis jirovecii, que na época ainda era chamado Pneumocystis carinii.

O estranho é que todos os pacientes eram homens jovens, aparentemente saudáveis. A pneumonia pelo Pneumocystis, também chamada de pneumocistose, não costumava adoecer pessoas jovens, saudáveis, sem graves problemas de saúde. Aquilo era tão estranho que, em 05 de junho de 1981, o Centers for Disease Control and Prevention publicou a série de casos: cinco homens do condado Los Angeles, jovens, previamente hígidos, homossexuais, com pneumocistose confirmada laboratorialmente.

05 de junho de 1981, portanto, é a data oficial do nascimento da AIDS. 

A retrospectiva

A epidemia de AIDS nasceu em junho de 1981 e a de COVID-19, no finalzinho de 2019. Mas é claro que o vírus e a doença já existiam. Essas datas marcam apenas nosso reconhecimento público delas.

No caso da COVID-19, os primeiros casos em retrospecto parecem datar de meados de novembro de 2019, um mês e meio antes da publicação da comissão de saúde de Wuhan — alguns pesquisadores apontam indícios de que o vírus já estava em circulação em agosto de 2019.

De toda forma, calculamos que o novo vírus seja novo, no máximo com alguns meses de história. Isso acontece porque a pneumonia pelo SARS-CoV-2 é uma doença aguda, de história rápida: a pessoa contrai o vírus, desenvolve sintomas dentro de poucos dias, permanece sintomático durante 4-6 semanas, e melhora.

O HIV, por outro lado, é bem diferente. Normalmente, a pessoa contrai o vírus, desenvolve uma síndrome retroviral bem inespecífica dentro de alguns dias, e depois permanece assintomático por uma década antes de desenvolver AIDS. O HIV é um vírus lento.

Isso explica em parte por que o HIV surgiu em 1910, mas só foi notado em 1981. Além de lento para causar a doença, o HIV é lento para se espalhar: ele se transmite por via sexual ou parenteral, de forma muito mais custosa do que o novo coronavírus, que se espalha pelo ar.

A tecnologia

Um dos aspectos que mais me interessam sobre as duas pandemias é este. Quando nós descobrimos o HIV nós éramos atrasados — claro, em relação a hoje. 

Em 03 de janeiro de 2020, apenas três dias depois que o surto de pneumonia de Wuhan se tornou público, cientistas chineses já tinham a sequência genética do novo vírus. Antes mesmo do anúncio público de Wuhan, em 27 de dezembro de 2019, já era sabido que um vírus desconhecido similar ao vírus da SARS fora isolado no lavado bronquiolar de um paciente.

Com o HIV, foi bem diferente. Em 1981, quando descobrimos os primeiros casos, não fazíamos ideia do que estava acontecendo. Os primeiros médicos consideraram que poderia ser uma imunodeficiência induzida por citomegalovírus, depois de confirmar a infecção em todos os cinco primeiros casos de AIDS. Chegamos até a considerar que seria um efeito colateral do uso de poppers.

Apenas em 1983 e 1984, duas equipes independentes, uma na França e uma nos EUA, publicaram que haviam encontrado dois novos retrovírus em tecidos de pacientes com AIDS. Em 1985, concluímos que os dois vírus na verdade eram o mesmo e que eles causavam a doença. Em 1986, o nome HIV foi cunhado.

Uma história bem mais arrastada de nosso conhecimento sobre a biologia do patógeno.

Superspreaders

Uma das teorias é o que o SARS-CoV-2 não surgiu no mercado de Wuhan, mas que o local foi um ponto em que pessoas infectadas encontravam muitas outras pessoas, espalhando o vírus sobremaneira: ou seja, pessoas que frequentavam o mercado eram superspreaders.

O HIV também teve seus superspreaders em seus primeiros anos, primeiro lá na África, depois nas metrópoles americanas, depois no mundo inteiro.

Sendo um vírus lento e de transmissão difícil, o HIV teve que encontrar um ambiente bem favorável para suceder em sua infância patogênica. O Jardim do Éden do HIV foi uma cidade do Congo, na época sob domínio belga, chamada Léopoldville, hoje, Kinshasa.

Na Kinshasa do início do século XX, há várias coisas interessantes acontecendo. O neocolonialismo está construindo cidades gigantes, com uma concentração de pessoas que a África nunca havia visto, senão talvez na área do Mediterrâneo e do Nilo. Pessoas urbanas são notavelmente mais promíscuas do que pessoas tribais — a própria organização social implica isso. 

Isso é exacerbado pela grande quantidade de pessoas que iam para Léopoldville para trabalhar nos empreendimentos neocolonialistas. Como você imagina um trabalhador na África neocolonialista? Homem, jovem, solteiro? Exatamente. Muitos homens jovens e solteiros habitavam Kinshasa nessa época. O número de prostitutas que atendiam a demanda desses jovens era imensa. 

Ou seja, havia muita gente na cidade, fazendo muito sexo. Houve uma explosão dos casos de úlceras genitais na região, resultado de infecção por sífilis, herpes ou donovanose. Como já dissemos, a transmissão do HIV é difícil: estima-se que as chances sejam de 4-8 em 10.000, no caso do sexo vaginal com parceiros sorodiscordantes. Mas o risco de contágio aumenta vertiginosamente na presença de úlceras genitais, chegando a subir três ordens de grandeza!

Além da promiscuidade, na época os neocolonos faziam campanhas extensas utilizando injeções para combater a doença do sono — com seringas reutilizáveis. Não precisa falar nada, né?

A esperança

Uma vez um professor me falou que alguns diagnósticos são sentenças. Ser diagnosticado com HIV era uma sentença. Até meados da década de 90, a expectativa era a morte, rápida e inexorável. 40% dos primeiros indivíduos diagnosticados morreram na primeira internação. A TARV mudou profundamente a história natural da pandemia. Hoje, mais pessoas têm HIV, porque elas não morrem mais como antigamente. Mesmo assim, não temos ainda uma vacina capaz de prevenir a infecção, mesmo depois de 40 anos.

Por outro lado, as vacinas contra o SARS-CoV-2 já estão prontas para serem testadas em humanos. As melhores perspectivas apontam para o início da imunização no final de 2020 e começo de 2021. A esperança é que a vida volte ao normal. Mesmo que seja o “novo normal”.

Seguimos em frente, com máscaras e camisinhas.

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