Resumo
Crimes são entidades graves, e apenas as piores agressões aos bens jurídicos mais importantes devem ser criminalizados. O abortamento é basicamente uma questão de direito à vida. O embrião é indubitavelmente vivo. Mas isso não quer dizer que ele deve ser protegido criminalmente. Nosso direito protege formas bem específicas de vida.
Introdução
Em dezembro de 2016, o STF soltou alguns médicos que estavam presos por cometer aborto com consentimento da gestante. A decisão, um habeas corpus, foi mais devida à forma como os médicos foram presos, e não ao mérito sobre a tipicidade do fato. Mas alguns ministros escreveram em suas sentenças que eram favoráveis à descriminalização do abortamento com consentimento da gestante.
Na época eu nem tinha blog, mas escrevi um texto (não publicado) defendendo a legalização do aborto com base no “início da vida”. Para mim, esta é a forma certa de defender o aborto, até hoje. Eu não acho que devemos dar à mulher o direito de matar um ser humano só porque ele está dentro do seu corpo, nem acho que o fato das mulheres mais socioeconomicamente vulneráveis serem mais prejudicadas com a proibição seja um argumento legítimo. Tampouco penso que o fato de muitas mulheres realizarem aborto, mesmo sendo proibido, seja uma justificativa para legalizá-lo, e não acho que o fato de muitas mulheres se machucarem enquanto tentam abortar possa servir de razão à legalização.
Estes fatos podem e devem ser discutidos e são importantes para que entendamos o problema. Mas não são argumentos pró-escolha. É a mesma coisa que defender a legalização das drogas porque o tráfico é violento, ou porque a violência do tráfico atinge desproporcionalmente negros e pobres. Pode ser verdade, e é importante entender isso, mas não é um argumento forte para a legalização.
As drogas devem ser legalizadas porque não cabe ao Estado legislar penalmente sobre o que eu faço comigo mesmo.
Da mesma forma, não cabe ao Estado proteger penalmente um monte amorfo de células que não sente nem pensa nada.
O embrião é um monte amorfo de células que não sente nem pensa nada.
E é por isso que o aborto deve ser legalizado.
Os bens jurídicos
Para quem não está familiarizado com a teoria do direito penal, é o seguinte: o direito penal pune quem comete um crime com a retirada de um dos direitos humanos mais fundamentais: a liberdade. Essa punição só faz sentido quando o direito que aquele crime violou é tão ou mais importante do que a própria liberdade.
Por exemplo, faz sentido considerarmos que o homicídio seja crime, porque a vida é um direito humano importantíssimo. É uma boa ideia punir quem retira o direito de alguém à vida, retirando sua liberdade. Faz sentido.
Por outro lado, xingar alguém na rua é ruim, não é algo legal de se fazer, mas também não é o apocalipse. Imagine que sociedade seríamos se retirássemos a liberdade das pessoas porque elas xingaram alguém. Todas as torcidas organizadas do planeta estariam presas.
Xingar é ruim, mas não é tão grave como tirar a liberdade. Portanto, não deve ser considerado crime.
É por isso que eu também acho que fumar maconha não deve em hipótese alguma ser motivo para ir para a cadeia. E é por isso que eu tendo a pensar que talvez o furto simples (sem violência, sem ameaça, sem invasão de lar, sem arrombamento etc.) não mereça ser punido com cadeia.
Liberdade é importante demais.
O direito à vida
De acordo com esse pensamento, de que o direito penal se limita a punir apenas as agressões mais graves aos bens jurídicos mais caros que temos, a punição do aborto consentido pela gestante só faz sentido se considerarmos que o embrião é uma vida.
Mas é claro que o embrião é uma vida! Se bactérias são seres vivos, sem dúvida alguma o embrião o é. Ninguém sério pode dizer que o embrião não é vivo. Seria um absurdo.
Mas isso não quer automaticamente dizer que ele deve ser protegido pelo direito penal.
Nossa constituição e nosso sistema jurídico inteiro não defende simplesmente “a vida”. Se fosse “a vida”, não poderíamos de forma alguma matar bovinos, aves, suínos e caprinos para servir nossos fetiches alimentares. Nosso ordenamento jurídico defende um tipo bem específico de vida e o “direito à vida” é restrito a uma parte bem pequena dos seres vivos.
E os embriões não devem ser incluídos nessa proteção.
O embrião e o bezerro
Imagine um amontoado de células de meio centímetro que nunca viu luz, que nunca sentiu dor, que não tem nenhum medo nem esperança, que nunca amou, que nunca errou, que nunca se decepcionou, que nunca chorou… Que nunca nada.
Não há muito o que dizer dele. É um monte de células sem forma, apenas.
Agora imagine um bezerrinho preto e branco, nascendo no meio do pasto. Assim como nós, o bezerrinho nasce da dor excruciante de sua mãe. A vaca, o tempo inteiro em pé, expulsa a placenta e corre para lamber seu filho, limpando seu pelo dos vestígios de líquido amniótico — você achou que essa história de se alimentar de placenta era moda humana, né?
O bezerro logo a reconhece sua mãe e ela o reconhece seu filho. Ela o alimenta e protege. Ele cresce sob o seio materno e conhece o mundo. Sente o prazer de correr no pasto e a dor de se cortar no arame. Sente o desconforto visceral da sede e da fome, e o conforto de se deitar em uma noite fresca, rodeado de outros bovinos conhecidos e amistosos.
O bezerro cresce e vira um novilho bonito. Ele já não sabe onde está sua mãezinha. Ela sumiu, junto com outros companheiros, no dia que veio o caminhão. Ele não chora nem reflete sobre isso, mas ele a reconheceria se a visse, e ficaria satisfeito em vê-la. Podemos chamar isso de saudade?
O bezerro já tem 36 meses. Por trinta e seis meses, ele viu o dia nascer e morrer. Ele conhece o prazer da refeição, e a procura, e conhece a dor do cansaço, e o evita. O caminhão aparece novamente, ainda que ele não se lembre exatamente de já ter visto um.
Nosso bezerro é coagido para dentro do caminhão. Ele passa um dia inteiro apertado em um espaço fedorento e incômodo, sob o sol, sem comida e sem água, sem nem poder se deitar. Chegando ao matadouro, ele vê seus antigos companheiros de pasto agonizarem em sangue na sua frente e, em meio a golpes de lança, tenta resistir à própria morte. Em vão.
Quem é mais digno? Quem é mais vivo? Quem merece mais compaixão?
O monte amorfo de células, que não vê nem sente?
Ou o bezerro, que vê, sente, anda, come, sofre, acalma, reconhece, esquece, teme e espera?
O início da vida
Uma das discussões que mais me incomoda no debate sobre a legalização do aborto é aquela que questiona o início da vida de acordo com a ciência. Em 2016 isso já acontecia, e hoje é a mesma coisa: as pessoas dizem que “a ciência provou que a vida começa na fecundação” ou que “a ciência ainda não sabe quando começa a vida”.
Mas isso não importa, porque não é papel da ciência dizer quando começa a vida da pessoa. É papel da sociedade, das humanidades e do direito.
Do ponto de vista científico e biológico, o homem é um ser (vivo), que produz um gameta (vivo). A mulher também é viva, e produz outro gameta, também vivo. Os dois gametas se fundem e dão origem a um embrião que, como dissemos lá em cima, é indubitavelmente vivo.
Mas a vida não começou em nenhum momento deste recorte. Ela estava lá desde o começo.
Do ponto de vista biológico, a vida é um fio que começou com a primeira molécula autorreplicante (ou com a primeira célula etc.) e é reproduzida até hoje em diferentes organismos. A vida (científica, biológica) não começa em momento nenhum. Ela está em todos os lugares há bilhões de anos. E a vida que o embrião tem é a mesma vida que um ser humano adulto tem, que nosso bezerro tem, que uma bactéria tem e que uma peça cirúrgica tem.
A questão não é quando começa “a vida”. É quando começa a vida que deve ser protegida pelo direito penal e pelo ordenamento jurídico em geral.
Nós vamos chamar este conceito de vida ética. Desenvolveremo-nos em outros posts, em breve.
FIM DA PARTE 1
Gostei muito do texto!! Pontos de vista muito importantes a serem explorados e explicados. Parabéns!
Ansiosa para parte II.
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Obrigado, Elisa. Logo, logo lanço a parte 2.
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