O Estado, como o conhecemos hoje, assim como nossa noção de direitos e deveres, estão muito ligados às mudanças pelas quais o mundo passou durante as revoluções francesa e americana e, um pouco antes, às teorias do Iluminismo.
Isso é cansativamente repetido no ensino médio e, depois, se você teve o azar a oportunidade de se matricular numa faculdade de direito, vai continuar lendo ou ouvindo essas coisas pelo resto da vida, principalmente nas aulas de direitos humanos.
De fato, os direitos humanos (os que estão nas leis internacionais) e os direitos fundamentais (quase a mesma coisa, mas estão na Constituição) têm muito a ver com tais acontecimentos.
Por exemplo, foi na Revolução Francesa que se consolidou a crença de que todo ser humano é sujeito de direitos e deveres e que o Estado não pode meter o nariz na vida dos indivíduos além do necessário.
A propósito, essa pode parecer uma ideia simples de liberdade, mas não é. O que chamamos de direitos humanos de liberdade referem-se à garantia que toda pessoa tem de viver da forma mais livre possível, segundo suas escolhas e visão de mundo, o que abrange religião, política, convicções filosóficas, time de futebol — e, claro, o que consumimos diariamente. Bebendo, comendo, fumando…
Assim, a rigor, num primeiro momento, eu posso fazer o que quiser com a minha vida. Sou eu que lhe dou sentido e ao Estado só cabe o respeito pelos caminhos que eu escolher trilhar (ainda que minhas escolhas sejam péssimas, mas quem decide isso sou eu).
É por isso que nenhum policial pode me abordar na rua por estar vestindo uma camisa listrada e uma bermuda xadrez ou por usar suspensório e cinto ao mesmo tempo. A vida e o corpo são meus e eu decido que significado dou a eles.
E acho que já ficou claro, até aqui, que, no meio disso tudo, também estamos falando sobre drogas. Um adulto capaz (ou seja, consciente), que escolhe, por si mesmo, introduzir no próprio corpo qualquer substância que altera o “normal”, está exercendo seu direito de liberdade, ainda que, mais tarde, tenha que pagar algum preço por isso.
Ele está sendo livre da mesma forma que um milionário que decide investir toda sua fortuna na fabricação de dispositivos que abram sachês de ketchup. Ou tão livre quanto um cidadão que, em meio a 13 diferentes candidatos numa eleição qualquer, decide votar no menos preparado deles. Podem ser escolhas ruins, mas são legítimas.
É claro que existem limites. Como diz aquele famoso ditado, “meu direito termina onde o do outro começa”, e essa é uma ideia bastante interessante. Na verdade, falando em termos mais técnicos, o limite é causar danos a outrem. Para o direito penal, é lesar qualquer bem juridicamente tutelado (vida, patrimônio, saúde).
Assim, só é crime (ou só deveria ser) um comportamento que atenta contra o direito de uma pessoa ou da coletividade. Por isso, eu não posso ser condenado por uma ação que diz respeito somente a mim mesmo, por exemplo, pensar: ninguém pode ser preso por ter certo tipo de pensamentos, por piores que eles sejam. Da mesma forma e por motivos muito parecidos, o Estado não pode prender alguém por tentativa de suicídio.
Morrer não é crime, nem se matar, nem tentar se matar. Porque, mais uma vez, são escolhas que concernem tão somente ao núcleo da vida do próprio indivíduo e que decorrem dos sagrados direitos de liberdade.
E drogar-se está no mesmo balaio.
Primeiramente, nem todo consumo de drogas pode ser considerado “problemático”. Assim como é comum que algumas pessoas bebam cerveja duas vezes por semana ou tomem aquela famosa latinha diária no final da tarde, um indivíduo também pode fumar maconha ocasionalmente sem que isso configure dependência ou perturbe sua rotina e produtividade. Isso é o que chamamos de “uso”.
Já o abuso é quando há um consumo excessivo, que causa dependência e gera (graves) danos à vida e à saúde do sujeito.
Nenhuma dessas duas formas de consumo, contudo, deveria ser considerada crime.
A antiga lei de drogas do Brasil (Lei 6.368/1976) previa pena de detenção e multa àquele que adquirisse, guardasse ou trouxesse consigo drogas para uso próprio. A legislação atual (Lei 11.343/2006), ainda que preveja penas mais “brandas” (advertência, medida educativa e prestação de serviços comunitários), continua punindo o consumo de drogas.
O direito, assim, se contradiz. Opõe-se a toda a lógica e a tradição dos direitos humanos, que ajudaram a fundar a própria noção de Estado democrático de direito que temos hoje. E o faz quando atenta contra a liberdade do indivíduo de fazer suas escolhas, punindo-o pelo consumo de substâncias, muitas vezes, arbitrariamente proibidas.
Falamos de filosofia, ciência política e de direito (como ciência), o que pode ser muito abstrato. Mas, na prática, essa contradição que eu aponto pode significar que um grupo de amigos fumando maconha na praça vai acabar o dia no porta-malas de uma viatura policial. Pode responder um processo na Justiça, ser condenado a essas penas “alternativas” que comentei e acabar ganhando um estigma por muitos anos.
O Estado, então, mete muito mais do que o nariz onde não foi chamado. Ele pesa a mão sobre a vida e a liberdade dos usuários e ainda os taxa de criminosos.
Assim, se direitos humanos significam respeito à liberdade do outro, a nossa legislação de drogas é muito mais do que uma contradição juspolítica. É um enorme paradoxo.

E quanto a medicamentos tarja preta? Se eu posso fazer o que quiser com meu corpo, porque não posso comprar livremente metilfenidato e clonazepam? Qual é a justificativa para vender cannabis e cogumelos para recreação, bastando que o comprador seja maior de idade, e não vender benzos ou anfetaminas?
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A discussão de saúde é muito relevante mesmo (puxando um pouco de sardinha pro nosso lado né), permitir e não restringir consumo de algumas coisas, gera prejuízo não só ao indivíduo, mas à sociedade onde ele se encaixa, especialmente numa onde o estado promove a saúde. Mais gastos em saúde é mais dinheiro do contribuinte. Por isso impostos em cigarro nunca são poucos, um paciente que infarta, tem um AVC, não só causa prejuízo a seu núcleo social, como ao sistema como um todo, captando recursos e deixando de produzir. Acho que a discussão do texto tá mais pontual no aspecto proibicionista e criminal, por ser uma série, tô esperando ele entrar nesses aspectos mais pra frente.
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Sem contar que drogas recreativas legais sempre têm uso mais prevalente. E nós não queremos mais pessoas consumindo cannabis, cocaína etc., nem tabaco e álcool. Por que não proibir tudo?
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Os medicamentos tarja preta, por não serem proscritos, apenas restritos à receita médica, conforme o caso, são sujeitos a variados estudos, publicações e sua venda é acompanhada de bula detalhada, além das observações e indicações que o médico prescritor puder dar. E mesmo assim, ocorre abuso e uso desses fármacos até mesmo sem receita. Substâncias proibidas, por outro lado, são um tabu. A depender do local, até com pessoas jovens e consideradas mais “mente aberta”, só de falar o nome de uma droga você já percebe um certo medo no ar. Se não podemos nem ao menos conversar sobre elas sem nos sentirmos esquisitos, sem que o governo publique, fomente ou diga nada à sua população além de “diga não às drogas”, “você nunca será livre se escolher usar drogas”, a situação é completamente diferente. Em um cenário de legalização e regulamentação, com amplo apoio à pesquisa, divulgação de informação científica e clara, a comercialização das ditas drogas ilícitas se torna segura, talvez até mais que os já citados remédios controlados.
Por que uma flor de uma cannabis fêmea ou um cogumelo Psilocybe cubensis não poderia vir acompanhado de bula, também? Mais ainda, como faz o Uruguai, porque não criar um registro para o cidadão que queira cultivar, comprar e consumir a substância que deseja? Isto não seria seguro e muito mais interessante do que comprar uma dola de prensado fedido e misturado com sabe se lá o que?
Portugal, por exemplo, primeiro país no mundo a descriminalizar o porte e uso pessoal de todas as substâncias, presenciou diversas mudanças positivas no país. Por exemplo: a procura de serviços de saúde pelos usuários problemáticos de drogas. Quando você deixa de tratá-los como criminosos, e sim como pacientes, a aborgadem com certeza fica melhor.
Outro exemplo mais próximo: as campanhas governamentais brasileiras contra o tabagismo. Já leu sobre como elas funcionam e diminuíram o abuso de tabaco entre nós? Existe até tratamento no SUS para quem deseja parar de fumar, sem falar nas sempre presentes propagandas nos produtos.
As experiências internacionais da proibição e da guerra às drogas comprovam cada vez mais como nossos governantes falharam. Proibir tudo? Qual a pena? Tenho certeza que seria o caos. Agora, um ambiente em que se possa falar sobre drogas, em que se possa estudar sem ser alvo de críticas e preconceitos, num espaço em que se possa falar sobre as substâncias, o que fazem, como fazem, quais os riscos etc. me parece muito mais coerente para trazer benefícios sociais.
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Meu ponto nem é esse. Meu ponto é: se as drogas devem ser legalizadas, porque eu não poderia comprar metilfenidato no bar? Ou clonazepam? Isso também entra na “legalização das drogas”? Pq se for pra legalizar maconha e cogumelo e não legalizar benzo, o princípio da alteridade continua não sendo observado. E a legalização continua sendo seletiva, como é hoje.
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eu, particularmente, quero mais e mais pessoas consumindo cannabis de qualidade. mas isso é uma visão minha, tá? – álcool,+ maconha
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Me parece um pouco inocente…
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Cara, até onde sei, metilfenidato, clonazepam e benzo são todos das Listas A e B da Anvisa. Portanto, legais. A legalização só poderia tratar das Listas E e F.
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Eu não estou dizendo isso.
Metilfenidato, benzos, anfetaminas, opioides etc. são legais, mas são de uso restrito. Tenho certeza que muitas pessoas gostariam de usá-los recreativamente. Então, qual o sentido de liberar as drogas ilícitas para consumo recreativo (mesmo que controlado) e não liberar essas outras substâncias? Ou elas serão liberadas também?
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Eu não defendo a liberação generalizada sem qualquer critério. Pra mim, toda substância deve ser corretamente enquadrada na categoria que lhe couber (entorpecente ou psicotrópica, por ex), e toda a sua produção, comercialização e uso deve vir acompanhado de estudos, advertências, etc. Deve haver informação acessível sobre cada droga, também (vide programa do governo holandês Drugs Lab). Não penso que devamos mexer nas drogas já controladas, ainda mais porque elas já possuem seus critérios bem estabelecidos. A seletividade é importante sim, na legalização, principalmente se considerarmos que a Cannabis é a mais usada entre elas e uma das menos danosas entre as mais usadas, também. Sem falar em todo o potencial de mercado já evidenciado mundo afora.
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Boa. Massa.
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Muso! Sensato.
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Texto necessário. Keep up the good work! Parabéns pela escrita 😉
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