As drogas como um problema de saúde

Tenho mentido nos últimos textos. A legalização das drogas está longe de ser um assunto fácil, que possa ser resolvido com um simples “a vida é minha e eu faço o que quiser com ela, inclusive me drogar até à morte”. 

É claro que existem boas razões para algumas substâncias — com destaque para o ópio e a cocaína — terem sido banidas nas longínquas reuniões de 1912 e naquelas que a sucederam. 

A dependência em “tóxicos” é uma velha conhecida da sociedade e faz milhões de vítimas todos os anos. Os relatos sobre o vício em ópio, na China dos séculos XVIII e XIX, por exemplo, são assustadores. 

Mas nem precisamos ir longe. Quantas famílias sofrem com dependentes, inclusive, talvez, a nossa própria. Quantas vezes não saímos por aí e vemos pessoas em situação de rua, fissuradas. Em desespero para conseguir uma pedra de crack, uma carreira de cocaína ou um copinho de pinga. É generalizado, não preciso aprofundar nesse assunto. 

E esse é o grande motivo da proibição da produção e do uso pessoal de drogas: a proteção do bem jurídico “saúde pública”, tutelado pelo direito penal, ao qual o Estado confiou a guarda dos bens mais preciosos da sociedade, como a vida, a segurança, o patrimônio etc. 

Para explicar melhor, a razão para se proibirem as drogas é bastante parecida com aquela que levou à imposição da vacinação obrigatória a todos. E sim, ela é obrigatória. Segundo a Lei 6.259/1975, as pessoas, no geral, devem estar em dia com o calendário oficial de vacinação do Ministério da Saúde. Inclusive a desobediência pode ser causa de punição, até mesmo em caráter penal. 

É por isso que, de vez em quando, assistimos a alguns pais serem obrigados a vacinar seus filhos, ainda que contra suas convicções pessoais. Porque não se trata de uma escolha. 

A não vacinação colocaria em risco a saúde da coletividade. Assim, não se vacinar ou não vacinar seus filhos transcende uma opção individual e expõe toda a sociedade a doenças há tempos erradicadas ou controladas. Ou seja, ofende o direito do outro e ameaça a existência da humanidade e o usufruto dos seus direitos. 

Deu pra entender a analogia? Ocorre o mesmo com as drogas. 

O Relatório Mundial sobre Drogas de 2020, um documento oficial elaborado pela agência da ONU especializada no tema, divulgou que, em 2018, 269 milhões de pessoas usaram drogas no mundo, o que equivale a um aumento de 30% em comparação com 2009. Também, cerca de 35 milhões de pessoas foram diagnosticadas com transtornos associados ao uso de drogas. É gente pra caramba. 

Então, qual a diferença disso pra outras graves epidemias ou pandemias

Enquanto eu escrevo este texto, os dados oficiais mostram que mais de 15 milhões de pessoas contraíram COVID 19 pelo mundo afora. Desses, mais de 625 mil morreram. Os números da pior pandemia do século ainda são bem inferiores àqueles das drogas. 

A diferença é que eu considero isso tudo um sofisma. 

Existe um movimento internacional de um século de idade que transformou as drogas no inimigo público número um do Estado e das pessoas de bem. 

De repente, sobretudo da década de 1960 para cá (mais ou menos desde a aprovação da Convenção Única sobre Entorpecentes, de 1961, ainda vigente), milhões de pessoas passaram a ser julgadas e condenadas a anos de prisão pelo “comércio” de drogas. Em 1971, o então presidente dos Estados Unidos Richard Nixon declarou o “início” da guerra às drogas. 

Na realidade brasileira, até junho de 2019, tínhamos 773.151 (pessoas, seres humanos) presos. Desses, 39,4% foram encarcerados por crimes previstos na lei de drogas, ou seja, mais ou menos 300 mil. Só 11,31% (cerca de 87 mil) cometeram crimes contra a vida (homicídio, violência doméstica etc.). 

Mas chega de estatísticas. 

Eu falei em sofisma porque acredito que são falaciosas essas comparações do uso de drogas com outros problemas da sociedade. São terrorismo, visam a gerar medo e abafar discussões mais sérias. 

Um exemplo é um relatório escabroso de 1915, escrito por um médico sergipano chamado Rodrigues Dória, que chama o “maconhismo” de herança maldita que os negros deixaram aos brancos como vingança pela escravidão e relaciona o consumo de maconha à promiscuidade e ignorância do que ele chama de “escória da sociedade”. Outro exemplo é uma cartilha da guarda civil espanhola, de 1964, que explica as drogas como companheiras da violência e da promiscuidade e as relaciona a membros de movimentos pacifistas, grevistas, comunistas e estudantis.

A temática das drogas, assim, é o tapete pra onde se jogam todos os problemas indesejáveis que o Estado não sabe ou não quer resolver. 

A propósito, a comparação do consumo de drogas com a recusa da vacinação é outra falácia. Obviamente que fumar maconha no meu apartamento, numa sexta-feira à noite, é um ato que, por si só, não vai trazer absolutamente nenhum dano à sociedade. Ao contrário, por exemplo, do pai que isenta seu filho da vacina do sarampo e da varíola – nesse caso há uma exposição direta e imediata da criança e outra exposição indireta da sociedade como um todo. 

O uso de drogas (e não o abuso, não estamos falando dele) não é presumivelmente nocivo a ninguém além de ao próprio usuário. O que poderia causar danos é a apologia ou a propaganda dessas substâncias — assim como causam as campanhas publicitárias das cervejas ou a exibição exagerada de pessoas fumando nos filmes da Netflix. 

No mais, o uso contínuo, eventual ou isolado de drogas que não seja considerado problemático continua sendo uma questão de escolha. 

E assumir o rol de direitos humanos e fundamentais que nós temos hoje, previstos na Declaração de 1948 e na Constituição Federal, significa assumir suas consequências, inclusive quanto à questão de liberdade. É um rol, não um cardápio, e nós não podemos escolher apenas os direitos que nos agradam, porque são mais fáceis de lidar, e excluir os demais. 

— Mas, meu senhor, eu devo lhe lembrar que a saúde também é um direito, assegurado diversas vezes pela Constituição. 

Eu sei, também assisti a essa aula. Mas justamente por ser um direito fundamental que, se queremos encarar as drogas como um problema de saúde, temos que comprar o pacote completo. Simplesmente não dá pra varrer esse assunto para o direito penal, enfiar 300 mil “traficantes” na cadeia e pagar a polícia pra autuar maconheiro na praça. 

Se droga é caso de saúde (e não de polícia), está na hora de levar essa questão mais a sério e trabalhar para, efetivamente, proteger a saúde do usuário e das pessoas à sua volta. 

O primeiro passo é admitir que nem todo consumo é problemático e nem todo consumidor vai se tornar dependente e violento. Virar um “noia”. 

Por isso, não faz sentido aplicar o art. 28 ao usuário e cominar-lhe até três penas diferentes. Nenhuma é de cadeia, mas continuam sendo penas. Estigmatizantes, inclusive. 

Falta imaginação e coragem para lidar com isso. 

Um exemplo que eu gosto são as políticas de redução de danos. Você já ouviu falar delas? Vou tentar explicar. Em síntese, o Estado assume que sempre houve e sempre haverá algumas pessoas que “desviam da norma” e que vão usar drogas, independentemente da pena que se estipule pra isso. 

Então, são criados programas que, já que não conseguem eliminar os “danos” (uso e abuso de drogas), tentam reduzi-los. Assim, em 1989, na cidade de Santos, em pleno surto da AIDS, a prefeitura começou distribuir seringas e agulhas entre usuários de drogas injetáveis. 

Em outros lugares do mundo, governos criaram espaços seguros para o consumo dessas substâncias, inclusive, em alguns casos, fornecendo a droga ou algum similar menos nocivo que pudesse substituí-lo. Apesar da falta de estudos e de informações mais completas, principalmente no Brasil, os resultados têm sido promissores

— Mas e se a legalização das drogas tirar o consumo do controle? E como tem sido nos países que legalizaram, pelo menos a maconha?

Calma. Legalizar não significa generalizar. Sobretudo, não estamos pedindo a ampla promoção do uso de drogas, como se fosse algo cool. Existem regras e deve continuar havendo, assim como ocorre com os “remédios controlados”. Pode e deve haver um acompanhamento médico-legal dos usuários, inclusive com cotas semanais para cada um. 

Lembro que isso tudo seria uma forma de acolher o usuário na sociedade, e não de exclui-lo. 

E quanto aos outros países, meu amado Uruguai leva a maconha bem a sério. Há um serviço muito eficiente que monitora o consumo da erva em território nacional, há fiscalização e limites para aqueles que cultivam em casa e há também um rígido controle da droga que é vendida nas farmácias. Existem, também, vários estudos sobre a relação entre legalização e violência e tudo é feito na maior cautela. 

Por fim, outra sugestão é de que a ciência seja levada a sério. Chega de juristas e de legisladores que vivem isolados do mundo, presos aos manuais de direito, mas sem dialogar com outras áreas do conhecimento. Chega, também, de misturar esse assunto com religião e moral e de deixar que a opinião de líderes religiosos tenha mais valor do que estudos de médicos, psicólogos, sanitaristas etc. 

Não existe progresso sem diálogo, definitivamente. Nem sem maturidade. 

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