Hay una historia que no cuento a nadie

Eu fui ao cinema sozinho e eu nunca fazia isso. 

Eu estava no primeiro ano de arquitetura e ainda não tinha muitos amigos. Tanto faz, no final da faculdade eu também não tinha. 

Fui assistir Um estranho no ninho, Jack Nicholson, todo mundo falava sobre. Já fazia alguns meses que estava em cartaz, mas tenho certa resistência com novidades, ainda mais nessa época, era meio blasé. Eu era bem chato, na verdade, achava que só as coisas antigas tinham valor, imagina, nessa época, então, estamos falando dos filmes dos anos 1940 e 1950, só os clássicos. 

Sábado de manhã, acordei de ressaca e com gosto de cigarro na boca. Fumei outro cigarro antes de fazer um café, forte e sem açúcar, que eu bebi enquanto fumava pela segunda vez na sacada do apartamento minúsculo, olhando a rua e pensando na noite anterior. 

O filme era só à noite, bem mais tarde, e até lá, não tinha nada pra fazer. Aliás, estudar, que a vida não é fácil e viver da grana do meu pai já estava enchendo o saco. Não que ele me cobrasse, não fazia isso, nem mandava pouco, aliás, eu vivia muito bem, casa pequena, mas bem localizada e só pra mim, e mais um carro e uma mesada razoável. Quase ninguém tinha carro nesse tempo. 

Droga, derramei café na camiseta branca, nem sei porque usava roupa dentro de casa, morava sozinho, mas a gente estava em julho e fazia um pouco de frio, um motivo a mais pra ter preguiça de lavar roupa, encarar a água gelada ou sair procurando uma lavanderia, das duas uma. 

O telefone tocou e eu não estava muito disposto a atender, esperei tocar mais cinco vezes, só para a pessoa do outro lado ter certeza de que queria falar comigo. Era o Pedro, um rapaz da minha sala, dizendo que não poderia ir ao cinema comigo mais tarde, algo a ver com problemas de família. Mentira, ele não queria ir, obviamente, imagino que estivesse sem grana ou com preguiça da minha companhia, não éramos grandes amigos, mas a gente trocava uma ideia quase toda aula. 

Enfim, já que aquele filho da mãe me deixou na mão, disse um tchau sem problemas e desliguei o telefone, voltei pra sacada e acendi o terceiro cigarro, antes de decidir o que fazer com meu dia, já que, com a minha vida, eu não fazia ideia. 

Peguei um livro e enchi uma taça de vinho, da garrafa que eu abri ontem, um merlot vagabundo, apesar do preço. Meu estômago doeu como se tivesse engolido fogo, barriga vazia, oficina da gastrite, não comi nada e já queria beber, logo de manhã. Que não seja por isso, uma ou duas bananas devem resolver meu problema. Voltemos ao vinho. 

O livro de poesia, edição de luxo, com capa dura e tudo, somente poemas de mulheres. Minha ex que também foi a primeira namorada me deu, um pouco antes de terminarmos, disse que eu era um machista do caralho e que devia entender que o mundo vai muito além do meu pinto. Mas ela só me chamou de machista quando terminamos, ali ela apenas insinuou. 

Não sei quanto a isso, mas sei que os poemas da Sophia de Mello mexiam comigo, fascinantes, atraíam meus olhos e a minha atenção como o mais lindo pôr do sol na beira do mar. Lia um pouco e fechava o livro suspirando fundo, digerindo aos poucos aquelas palavras, banquete poético, mas que me pesava pela densidade. A beleza também ocupa espaço. 

Comecei a pensar na ex-namorada, será que ela me odiava tanto assim, tentei não ser um superbabaca, mas enfim, homens têm grande vocação pra isso, precisamos todos os dias desaprender a ser homens e nos educar enquanto humanos, o que requer um grande esforço, pelo menos da minha parte. Ela era linda, os cabelos loiros e compridos, terminando em suaves ondulações que eu gostava tanto de passar os dedos enquanto a assistia dormir. 

No meio da tarde, tomei banho e me vesti muito bem, um blazer de veludo cotelê cáqui, por baixo um suéter preto, calça jeans e all star, oscilando entre o casual chique e o despojado, tão na moda ainda, talvez por influência dos hippies. Faltavam algumas horas para o filme, mas pensei que podia caminhar um pouco, fumar outro cigarro naquelas ruas largas e quem sabe entrar em alguma livraria, depois passar no Tortoni e tomar um café batizado com uísque, acho que chama café irlandês. 

Depois, saindo da Avenida de Maio, já estava escuro e o vento frio de inverno me fazia pensar que pôr os pés na rua com apenas um suéter teria sido um grande erro. Tinha que confiar que o uísque do café seria um aquecedor eficiente. 

Na porta do cinema, uma fila curta, formada principalmente de casais. E eu, o lobo da estepe, sozinho com meus pensamentos, nem lembro a última vez que abri a boca pra falar alguma coisa, no Tortoni, provavelmente, no telefone com meu colega e, antes disso, num diálogo mais longo, eu nem saberia dizer. 

Havia uma sala de espera no cinema ligeiramente elegante, com poltronas projetadas para casais se sentarem juntos, estavam todas ocupadas e eu, escorado na parede, de tocaia, caso alguma delas vagasse. Foi então que uma moça, que, ao que tudo leva a crer, também estava só, se levantou e eu, pronto para dar o bote onde ela estava, vi que, de seu casaco, caíra o ingresso do cinema, que ela também deve ter comprado alguns instantes atrás. 

— Buenas noches, señorita. 

— Pode falar em português, que seu espanhol é difícil de entender. 

Fiquei um pouco ofendido, anos estudando a língua e lendo de tudo, deu vontade de responder em francês ou no italiano perfeito que aprendi com minha mãe, só por pedantismo, mas levantando o rosto e olhando melhor a moça, não me sobrou muita coisa pra dizer:

— Seus olhos são tão bonitos como. 

Me assustei com a minha coragem, em parte culpa do uísque, mas logo me absolvi, porque falei exatamente o que quis. Pra minha surpresa, a moça na minha frente reagiu como se já soubesse de antemão o que eu diria e essa naturalidade me chamou tanto a atenção que esqueci o motivo da abordagem.

— Você precisa de alguma coisa? Ela perguntou. 

— Perdão? Ah, sim, seu ingresso caiu, quando você se levantou. Peguei pra te entregar. 

— Muito gentil, obrigada. 

— É… Eu gaguejei, meio sem jeito, no vão que existe entre tomar alguma atitude e perder uma grande oportunidade. 

— Eu estou sozinha. Se você estiver também, não gostaria de me fazer companhia durante o filme?

— Sim, por que não. Prazer, eu sou o Francisco. 

— Isabel.. Vamos? Já vai começar. 

Caramba. O Jack Nicholson preso naquele hospício e eu só queria segurar a mão de Isabel, delicadamente pousada no braço esquerdo da poltrona, ao meu lado, parece até que de propósito. E, mais uma vez, senti que seria tão natural que fizesse isso que, para evitar uma gafe ou uma atitude precipitada, enfiei minhas mãos no bolso da calça e fiquei assim durante todo o filme, meio maluco, ela deve ter pensado. 

No final, saímos da sala empolgados, comentando sobre a história, até chegar à porta da rua, e quase todo mundo tinha ido embora, já iam apagar as luzes do cinema, e nós dois ali parados, conversando, não fazia mais do que dez graus. 

— Acho que é hora de ir, está ficando tarde, não deixa de ser perigoso. Ela comentou olhando para o céu, como quem procurasse alguma resposta oculta nas constelações. 

— Eu tenho café e vinho no meu apartamento. Talvez também tenha queijo, mas não prometo. Por que não vem comigo. Foi minha vez de perguntar. 

— Não sei, a verdade é que acabei de te conhecer. E se. 

— Não se pode esperar nada de ruim de uma pessoa que vai sozinha ao cinema assistir Um estranho no ninho. Eu falei com um meio sorriso nos lábios e a olhando atentamente nos olhos, com uma mistura de malícia e divertimento. 

— Nós teremos que caminhar muito?

— Um pouco, mas posso pedir um táxi. 

— Não precisa, eu gosto de caminhar. A noite está agradável. Seria uma pena perder essa lua cheia. 

E tudo que Isabel dizia parecia um poema, uma sinfonia completa tocada pela orquestra de um reino distante que eu acabava de conhecer, mas, ao mesmo tempo, que sempre esteve na minha vida. 

Quando a gente chegou na esquina, passou um Jeep verde gritando viva Videla e eu respirei fundo tentando disfarçar a minha apreensão. Não sei se ela percebeu, mas não quis tocar no assunto. Deixa pra lá. 

Descobri que ela aprendeu português morando na fronteira. Estava no quarto ano de medicina e, algumas vezes por semana, dava aulas de ciências numa região pobre na periferia da cidade. Não conhecia muito sobre poesia, mas gostava de viajar, e achava bossa nova mais atraente do que os tangos do Gardel. O que, por ali, era quase um sacrilégio. 

E ela era toda assim. Quanto mais a ouvia, mais queria saber sobre sua vida, conversamos até de madrugada, na sacada do meu apartamento, com pequenas pausas quando algum vizinho fazia shh na janela ou gritava pra calar a boca. Até que eu peguei a mão esquerda dela e beijei suavemente a ponta dos seus dedos, no que, sem esperar, fui retribuído por outro suave beijo na minha boca. 

— Você fica pro café? Perguntei.

— Depois nós vemos, isso vai demorar ainda. 

— Mas já está quase amanhecendo!

— Mas não amanheceu ainda. Vamos dormir um pouco. 

No outro dia, acordei não sei bem que horas, mas o sol já estava alto, embora o ar permanecesse friorento. O apartamento estava vazio e minha gastrite atacou mais do que nunca. Eu ardia em febre. 

Quando o vento entrava pela porta da sacada, eu conseguia sentir o perfume das orquídeas sem cheiro pela casa. Só havia rastros.

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