Um cientista deve buscar assuntos importantes e eu considerei que esse era um assunto importante. — Raphael Mechoulam, o “descobridor” do THC.
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O que mais tem no mundo é maconheiro.
E nem é piada. Segundo o último Relatório Mundial de Drogas, elaborado pela ONU — que eu já citei em outro texto e realmente recomendo a leitura — estima-se que cerca de 192 milhões de pessoas consumiram cannabis no ano de 2018. Isso representa mais ou menos 2,46% da população mundial, segundo um site que faz regra de três online (perdão, mas eu sou de humanas).
Ou seja, se você tem um círculo (mais ou menos) social formado por 1.000 pessoas (entre parentes, professores, colegas, amigos e agregados), estatisticamente é muito provável que 24 deles fumem um beck de vez em quando. Mas claro que se você tem amigos como os meus esse número pode ser bem maior.
Essa estatística faz da cannabis a droga ilegal mais consumida em todo o mundo, em primeiríssimo lugar. Em segundo, temos os opioides (como o ópio e a heroína), com 58 milhões de usuários; em terceiro, as anfetaminas, com 27 milhões; em quarto, o ecstasy, com 21 milhões; e, por fim, a cocaína, com 19 milhões de pessoas.
Números são chatos, mas só queria mostrar o abismo que existe entre o consumo da maconha e das demais drogas. Os opioides, por exemplo, não são uma droga em especifico, mas um conjunto de substâncias e, mesmo assim, estão num segundo lugar muito isolado. Já a famosa cocaína está lá atrás, com bem menos consumidores. A diferença é grande.
Por isso que eu e uma porção de gente acreditamos que a maconha deve receber um tratamento diferenciado das demais drogas. Não por ela não ser nociva nem não causar dependência (porque causa). Mas ela tem certas peculiaridades.
Quero comentar um pouco sobre minha percepção de que a cannabis é, de fato, tratada diferentemente. Depois vou falar das peculiaridades.
Existem movimentos sociais específicos que pautam a legalização do uso da erva, independente dos fins (recreativo ou medicinal). O maior exemplo é a Marcha da Maconha, surgida, em âmbito mundial, nos anos 1990 e que teve sua primeira edição no Brasil em 2002. Por muitos anos, aqui, ela foi considerada ilegal, porque o pessoal mais conservador acreditava que era uma apologia do uso de drogas — o que configuraria crime.
Em 2011, o Supremo julgou que a Marcha se tratava, na verdade, de um legítimo exercício do direito à liberdade de expressão e de reunião. Demorou nove anos pra dizerem o óbvio. Mas, como dizia meu pai citando alguém mais famoso do que ele, o óbvio também precisa ser dito.
Agora em 2020, tramita, também no Supremo, uma ação (ADI 5708) que busca conferir interpretação conforme a Constituição a alguns artigos da Lei de Drogas, a fim de “afastar entendimento segundo o qual seria crime plantar, cultivar, colher, guardar, transportar, prescrever, ministrar, e adquirir cannabis para fins medicinais e de bem-estar terapêutico.” Mas ela está parada desde dezembro do ano passado. Tecnicamente, “os autos estão conclusos para o relator”. Ou seja, tá tudo pronto pra ministra-relatora, a Rosa Weber, dar andamento ao processo e emitir seu relatório. Mas, por enquanto, tá parado.
Também existem alguns projetos de lei no Congresso Nacional no mesmo sentido, mas estou com preguiça de procurar o número e a tramitação deles pra inserir aqui. Pero que los hay, los hay.
Em linhas gerais, a gente pode dizer que, desconsiderando a polêmica das outras drogas e da descriminalização do porte de qualquer droga para uso pessoal (também existe uma ação em trâmite sobre isso) e levando em consideração apenas a questão canábica, existem dois grupos aqui:
i) dos ativistas que defendem que a maconha é uma droga muito mais leve do que as outras, com potencial lesivo e de causar dependência muito menor e, como já vimos, com um grande número de usuários que a consome com frequência sem que isso lhes traga grandes prejuízos. Por esses argumentos, esse pessoal acredita que a maconha, e só ela, deveria ser descriminalizada;
ii) dos pacientes, familiares, pesquisadores e militantes, que são defensores do uso medicinal da cannabis, os quais pensam que deveria haver um acesso mais amplo e democrático à planta “integral” ou aos canabinoides, de forma isolada, para fins medicinais. Isso poderia ocorrer de diversas formas, inclusive por meio de autocultivo, assunto que falaremos depois.
Notem que evitei classificar esses segmentos entre a galera do uso recreativo e do uso medicinal, divisão essa de que, como já explanei, eu discordo.
Outra coisa: é claro que essa outra classificação que eu fiz também é muito genérica e meio artificial. Porque existem muitos ativistas do primeiro grupo que defendem ferrenhamente a maconha como medicamento. E do segundo grupo, que não se importaria se ela fosse legalizada de forma geral, mas que têm outras prioridades.
Agora, eu gostaria de pedir licença para tratar apenas do segundo grupo e das peculiaridades da cannabis quanto ao seu potencial terapêutico. Mas tenho um bom motivo para isso. É que esse, precisamente, foi o tema da minha pesquisa de mestrado e acredito que eu tenha mais domínio sobre essa abordagem do que sobre outras.
Pois bem, a Cannabis sativa L. é composta por 421 substâncias diferentes, entre proteínas, vitaminas, pigmentos, compostos nitrogenados, açúcares e outros compostos orgânicos — citando a mim mesmo. De todos esses compostos, 70 são classificados como “canabinoides”, por terem efeitos ativos na fisiologia humana.
Dos 70, pelo menos seis já tiveram efeitos medicinais cientificamente comprovados: THC, Δ8-THC, CBC, CBD, CBG e CBN. Entre suas propriedades terapêuticas, temos efeitos ansiolítico, anti-inflamatório, hipotensor, analgésico, antiemético (alivia náuseas e vômitos), anticonvulsivo e até mesmo antipsicótico.
Quero lembrar que eu não sou médico nem nada assim. Essas informações todas eu extraí de estudos de cientistas brasileiros, espanhóis e estadunidenses. Aliás, gostaria de recomendar a leitura de uma obra publicada pelos cientistas brasileiros Sidarta Ribeiro e Renato Malcher-Lopes.
Esses estudos vêm sendo conduzidos há bastante tempo, a propósito. O CBN (canabinol) foi isolado pela primeira vez em 1896. Em 1930, já se conheciam os tetra-hidrocanabinois como os “reais agentes intoxicantes” da maconha. E em 1963, um grande cientista búlgaro-israelense chamado Raphael Mechoulam, vivo até hoje e um cara que eu considero muito foda, conseguiu isolar, pela primeira vez, o CBD (canabidiol) e, no ano seguinte, o THC (tetrahidrocanabinol). A partir de então, os avanços e as descobertas sobre o tema não pararam mais.
Mas, mais uma vez, ao contrário do dono do blog, eu não sou médico e estou aqui para falar sobre os aspectos jurídicos.
Mas gostaria de explicar que, em 2017, fiquei chocado quando descobri que havia famílias que chegavam a pagar 9 mil reais para importar um frasco de CBD – o óleo de maconha – para tratar seus filhos epiléticos. E que havia cerca de 17 associações ilegais no Brasil que produziam esse óleo a preços bem mais baratos para fornecer a quem precisava.
E por que isso tudo é tão complicado? Porque o Direito quis.
São leis, resoluções e portarias que baniram a maconha como o grande mal da humanidade. E foram essas mesmas normas que obrigaram a brasiliense Katiele Fischer a “traficar” maconha dos EUA para administrar pra sua filhinha epilética de cinco anos de idade, a Anny, em 2013.
A menina Anny Bortoli Fischer chegava a sofrer até 60 crises convulsivas diárias e nenhum medicamento registrado na Anvisa melhorava a situação. Com o uso do CBD, em poucos meses, as crises foram reduzidas a uma ou duas por dia.
Casos como o da Anny existem aos montes no Brasil. Milhares. Pra entender mais, recomendo a leitura da deliciosa dissertação de mestrado da antropóloga Fabiana Oliveira, da UnB.
Hoje, a realidade melhorou um pouco. A Anvisa alterou suas listas que classificam as diversas substâncias em de uso controlado, proibidas, etc.
Em janeiro de 2015, a Anvisa reclassificou o canabidiol para a Lista C1, de substâncias permitidas sujeitas a controle especial. Já em maio do mesmo ano, a agência de saúde publicou outra resolução na qual definiu os procedimentos e critérios para importação de produtos à base de canabidiol e elencou as marcas e produtos permitidos.
Ano passado, em 2019, eu fiz um levantamento do preço da importação desses medicamentos, quando o dólar estava R$ 4,16 (saudades…). E o tratamento, nessa época, poderia variar entre R$ 4.185,00 e R$ 8.970,62 por mês. Mas claro que, com a alta do dólar, esses valores também devem ter subido bastante.
É caro, né? Imaginem pra uma mãe que cuida sozinha da casa — e isso, infelizmente, é uma realidade bem comum no Brasil. Aí ela tem um filho com epilepsia ou mesmo com autismo, outro transtorno amplamente tratado com cannabis. Aí ela tem que desembolsar até R$ 8.970,62 mensais só com medicamentos. Num país em que a renda média da mulher é de R$ 2.050,00 por mês…
Mas, se você é um estudante de direito, deve estar pensando: ah, mas é só essa mulher procurar a Defensoria Pública e processar a Prefeitura pro governo bancar o tratamento de graça. Sim, mas, nesse caso, a conta continuaria igualmente cara, só estaríamos mudando quem vai pagá-la.
E por que estou pegando no pé desse assunto? Porque, meu jovem, o óleo de canabidiol não é um remédio tão complexo. Existem famílias que plantam maconha em casa, extraem o óleo e administram pro paciente — tudo, é claro, sob orientação médica.
Existe também uma associação na Paraíba, a Abrace, que tem autorização judicial para plantar cannabis, produzir medicamentos e fornecer a seus associados. Isso em parceria com a Universidade Federal da Paraíba e sob a fiscalização do Ministério Público Federal. A parada é bastante séria.
A Abrace consegue fornecer medicamentos, na mesma dosagem, volume e quantidade dos produtos importados que citei acima, a R$3.600,00 por mês.
É mais de 500 reais mais barato do que o remédio importado mais barato da lista (isso com a cotação do dólar do ano passado). Além disso, a Abrace reserva 20% de suas vagas para o tratamento de pacientes de baixa renda, com isenção de taxas e anuidade. E também oferece até 100 por cento de gratuidade em todos os medicamentos para pessoas em extrema pobreza ou em risco de morte.
Mas a Abrace é uma exceção. Eu diria que é uma rachadura cada vez maior no muro proibicionista.
O mesmo eu diria das famílias que têm obtido autorização na Justiça para o autocultivo, isto é, plantar maconha e produzir seu próprio medicamento.
Assim, ainda temos uma legislação retrógrada e bastante conservadora. Também temos uma agência da saúde inerte e uma Suprema Corte apática, sem nenhuma pressa de resolver o assunto. Mas, ao mesmo tempo, decisões judiciais isoladas e a organização da sociedade civil vão, pouco a pouco, mudando o panorama da maconha (medicinal) no país.
***
Enfim, aqui encerro a minha série de textos sobre drogas. Tentei ser didático, sem descuidar do cientificismo e das boas referências. Espero que possamos ter chegado em algum lugar melhor do que aquele do qual saímos.
E, enquanto escrevo e me despeço de vocês, estou deitado com uma terrível dor na lombar. Lamento pelo fato de o Estado me negar uma dose de CBD maravilhosamente analgésica para me aliviar isso. Em breve, quem sabe.
Os outros textos da série:
Conversando sobre drogas e direito
As drogas como um problema de liberdade
As drogas como um problema de saúde
As drogas como um problema de todos

Adorei a série e principalmente este texto. É um dos temas mais importantes do direito e da sociedade, em minha opinião, e você trouxe referências e argumentos essenciais. Obrigado por compartilhar suas ideias, José.
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Obrigado por ler, querido.
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Faz um alongamento pra melhorar essa lombar ai! Curti dms o texto, valeu
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kkkkkk hoje já tá melhor, preciso alongar todo dia. Obrigado pelo feedback!
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Fechou a série com chave de ouro, sensacional!
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Graciassss, depois quero ler sua opinião sobre o tema tb 😉
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