Esses dias meu primo me mostrou uma carta que minha mãe escreveu para ele em 1996. Ele guardou até hoje. Mostrei a carta para minha mãe e ela nem sabia que ele ainda a tinha.
Meu primo era menino, tinha uns 16 anos, e havia acabado de perder um dos olhos em um acidente industrial. Minha mãe, que tinha mais ou menos minha idade naquela época, escreveu uma cartinha para consolá-lo.
Eu achei incrível.
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Para meu querido sobrinho,
“… Às vezes, ver outros menos felizes ajuda a cura. Um rapaz com um braço só, vê outro a quem faltam os dois braços, então, ter um braço apenas deixa de ser para ele o fim de tudo. E o rapaz sem os dois braços tem grande orgulho em ajudar outro sem as duas pernas. É assim que as coisas se passam…”
Este texto foi extraído de um livro em que uma moça sofreu um acidente de moto e acho que não preciso lhe dizer o estado em que ela ficou, não é? O importante é que ela conseguiu vencer! Sempre existe alguém precisando de um outro alguém e de alguma forma esse alguém pode ajudar. É assim que você deve pensar. Agradeça a Deus por ter sido tão bom e pense que tudo poderia ser pior. Sei que não é fácil, mas sei também que você é muito forte e saiba que não fomos nós quem lhe demos forças para superar tudo isso, foi você com sua natureza alegre que nos ajudou a suportar o que o destino lhe (nos) reservou. Estou torcendo por você porque lhe tenho muito amor. Boa sorte! Confie em Deus e nos bons espíritos.
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Ironicamente, três ou quatro anos depois ele sofreria um acidente de moto. O residente de ortopedia que recebeu o caso disse que teriam que amputar sua perna. Não foi preciso, e hoje ele tem uma perna totalmente funcional. Eu tinha uns quatro anos na época, a gente morava no mesmo condomínio, e eu fui à casa dele visitá-lo e vi sua perna com aqueles fixadores externos bizarros. Na parede, um quadro do Ayrton Senna. Ele sempre me lembra Ayrton Senna.
Com 16 anos, perdeu um olho. Com 20 anos, quase perdeu a perna. Alguns anos depois, decidiu estudar para concursos e conseguiu entrar em um bom cargo. Depois, decidiu estudar direito e pagou sua faculdade, enquanto trabalhava e criava sua filha com sua esposa.
E nunca se entregou ao cinismo e ao ressentimento.
É uma das pessoas mais incríveis que eu conheço.
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Eu vejo muito esse cinismo e essa ideia de que a humanidade é um erro, essa ideia “prefiro animais que gente”. E eu acho isso horrível.
Pessoas são incríveis. Pessoas são animais tentando sobreviver num mundo bem difícil, sujeitas a todo tipo de perigo e tragédia, do frio e da fome ao acidente industrial e automobilístico. E a gente está fazendo o melhor que a gente pode, a maioria das vezes.
Isso me lembra uma palestra que Jordan Peterson deu na Nova Zelândia em 2019 em que ele fala sobre “masculinidade tóxica”. Eu não quero entrar no mérito do gênero, mas nessa aula Peterson fala sobre essa misantropia, essa ideia de que humanos fazem mal.
E ele propõe que olhemos o outro lado.
Se você procurar, você vai achar defeitos em todo mundo. Todas as piscinas estão cheias de ratos. Você sempre vai encontrar situações em que seus maiores heróis agiram de forma covarde ou de forma ridícula.
Mas, se você procurar, você vai achar uma história de coragem e superação em todo mundo também. E de amor. De pessoas que poderiam ter se entregado, mas resistiram.
Porque pessoas são incríveis.
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Quando eu dava aula na Uptime, eu tinha uma aluna de uns 40 e tantos anos, que estava sempre de saia. Ela trabalhava como vendedora em uma loja do centro e à noite ia para as aulas de inglês. Ela tinha muita dificuldade e ela era bem tímida, então ela ficava com vergonha de errar as coisas. Mas ela era muito sorridente e fofa.
Na época, minha mãe também estudava inglês depois do trabalho. Ela também tinha dificuldades e era bem tímida. E ela também tinha uns 40 e tantos anos e também era sorridente e fofa.
Essa aluna me lembrava muito a minha mãe. E eu sempre tentava ajudá-la o máximo que eu podia. E eu não sei se eu conseguia. Porque até minha mãe fala que eu sou arrogante e metido e que eu me acho mais inteligente do que todo mundo. E era muito fácil sentir isso ali na sala com essa minha aluna, eu com 21 anos dando aula de inglês para ela.
Mas eu tentava não ser assim. Porque eu odiava imaginar minha mãe com um professor arrogante e metido.
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Aliás, aquele primo que eu falei no começo, ele está estudando inglês agora também. Mais de 20 anos depois de perder o olho.
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Minha mãe trabalha na área da saúde lá na UFTM e ela já me disse mais de uma vez para eu não ser como os alunos de medicina arrogantes e metidos que de vez em quando aparecem por lá, que tratam os outros profissionais da equipe com arrogância e descaso.
E sempre que ela diz isso eu penso que algum estudante estúpido e arrogante como eu tratou minha mãe mal.
Não ser estúpido e arrogante é uma luta diária.
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Por uma dessas coincidências incríveis, eu atendi a mãe dessa aluna da Uptime no HC naquela mesma época. Não lembro exatamente quando foi, mas provavelmente no segundo semestre de 2017. Uma época conturbada para mim. Acho que o nome dessa minha aluna era Liliane.
Liliane, de meia idade, estava lá acompanhando a mãe dela, já idosa, com muito amor e com muita reverência. E eu com 22 anos, responsável pela saúde dela. Um estudante de medicina arrogante e metido.
E eu me lembrava da minha mãe, e isso amolecia meu coração.
O que a gente sabe, afinal? O que a gente pode fazer, senão considerar o improvável, lembrar que todo homem e toda mulher é uma estrela, e ser gentil, sabendo que cada pessoa que encontramos está numa batalha difícil da qual não sabemos nada?
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Existe esse poeta brasileiro chamado José Paulo Paes que teve uma perna amputada e escreveu uma homenagem a ela em seu irônico Prosas seguidas de ode mínimas. Segue trecho:
Ode a minha perna esqueda
Pernas
para que vos quero?
Se já não tenho
por que dançar.
Se já não pretendo
ir a parte alguma.
Pernas?
Basta uma.
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A vida não serve para ser feliz, ela serve para ser vivida. Nosso papel aqui é mirar em uma estrela e trabalharmos todos os dias para chegar mais perto dela. Pois é para isso que fomos feitos: para lembrar e ser lembrados, para a esperança no milagre, para ver a face da morte.
Mesmo sem um olho ou sem uma perna.

Fantástico
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Valeu, Biloquinha.
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