Existe este ditado famoso que nós escutamos muitas vezes na faculdade de medicina: “quem só medicina sabe, nem medicina sabe”. A ideia é que o médico deve ter algum conhecimento humano por trás de suas competências técnicas. Afinal, médicos mexem com pessoas e pessoas são estranhas.
Essa máxima é muito invocada por alunos de medicina para justificar alguma negligência com os estudos que decorre do tempo e da energia gastos em atividades extracurriculares, como festas, movimento estudantil, esportes e outros. Mais raramente, a frase é utilizada até para acusar pessoas que se dedicam demasiadamente à medicina e que de alguma maneira ligam sua persona muito intimamente à arte médica.
Aliás, este é o tweet que motivou o texto:
P q tem gente que faz medicina que parece que a personalidade só se baseia em medicina? Q triste, mô
Sinal dos nossos tempos: dedicar-se demais a algo parece um defeito.
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Eu sou a última pessoa que vai dizer que você, estudante de medicina, deve deixar seus esportes, seus livros e suas festas para se dedicar mais à medicina. Afinal, sou estudante de medicina, tenho um blog não-médico que me toma muito tempo e considero a medalha de ouro em handebol masculino nas Olimpíadas UFU 2019 minha maior conquista na faculdade. E acho estranho que estudantes de medicina não conheçam João Gilberto.
Mas é muito injusto criticar aqueles loucos que se dedicam inteiramente à medicina (ou a qualquer outra coisa). Primeiro, porque todo homem e toda mulher é uma estrela, e cada pessoa ou coisa é diferente, e (já que é assim) não temos direito de julgar o jeito de ninguém viver a própria vida.
E segundo, porque provavelmente eles serão médicos melhores do que você.
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É claro que há muitas outras coisas a considerar: inteligência é sorte, e ela faz toda a diferença no resultado final da sua competência médica. Talvez aquela pessoa bizarramente obcecada por medicina tenha métodos medievais de estudo e não consiga aprender nada de verdade. Pode ser.
Mas entre dois estudantes médicos iguais em todas as outras variáveis, o obcecado será um médico melhor. Porque ele vai dedicar mais horas à ciência. E no fim, independentemente da técnica e de tudo mais, você precisa de horas para ser bom em qualquer coisa difícil.
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Eu acho que o que falta mesmo é humildade. A gente quer se sentir superior e a gente gosta de achar que a forma que a gente leva a vida é a forma mais certa (ou menos errada). E a gente vê o nerd obcecado que tira as notas mais altas e logo reduz seu mérito: credo, ele só pensa em medicina, que chatice, que vida horrível.
Tudo ego ferido.
É muito difícil ser obcecado. É relativamente fácil ser 90% na faculdade, 80% nos esportes, 85% na família, 75% nos amigos, 60% em higiene pessoal e 70% no seu hobby pessoal.
Mas ser 150% em uma coisa só é difícil.
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Esses dias ela disse que seria referência na área dela. É claro que isso é bem possível, mas não é nem um pouco fácil. A gente menospreza muito a dificuldade que é ser o melhor em qualquer coisa.
Não menospreze o poder da obsessão. Nem seu poder para criar gênios nem seu poder para destruir vidas. A maioria de nós não nasceu para se dedicar 150% a uma coisa só. Nós não conseguimos.
E aqueles que conseguem merecem apenas admiração.
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Quando eu ia chamar os bixos da faculdade para jogar handebol eu costumava dizer que cada um tem sua onda: alguns gostam de estudar, outros gostam de bateria, alguns gostam de beber, outros gostam de movimento estudantil, alguns gostam de pesquisar, outros gostam de empreender e alguns gostam de jogar.
E a cada um cabe segurar a sua onda, e não a do outro. Quem é de beijo, beija, quem é de luta, capoeira.
Então não menospreze os obcecados porque eles não gostam de festas, séries, esportes ou baterias. Quem só medicina sabe, sabe medicina pra car***o.

Nah, crítico sim. Ter sabedoria técnica não garante nem resultado nem simpatia dos pacientes.
PS: sou patologista.
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