O alemão e o judeu
No início de sua obra prima Em busca de sentido, o judeu vienense Viktor Frankl atribui ao filósofo alemão Nietzsche a frase: wer ein Warum zu leben hat, erträgt fast jedes Wie, que significa algo como “aquele que tem um porquê para viver pode aguentar quase qualquer como”. A frase original de Nietzsche, que tem o mesmo sentido, aparece no livro O crepúsculo dos ídolos, de 1889.
A ideia é que a pessoa que tem um motivo forte o suficiente para viver consegue sobreviver mesmo em condições terríveis — e não fui eu quem disse isso, foi Viktor Frankl, sobrevivente do Holocausto que perdeu a família inteira nos campos de concentração. Se tem alguém que sabe sobre viver em condições terríveis, ele sabe.

Parece que ter uma razão última e fundamental para existir realmente é um processo cognitivo capaz de motivar sobremaneira os seres humanos. Tanto é que a “busca por sentido” tornou-se até uma forma de terapia, nas mãos de Frankl.
Mas o que é que a cocaína tem a ver com o sentido da vida?
A cocaína é uma das drogas de abuso de efeito reforçador positivo mais forte entre mamíferos. Alguns animais de laboratório chegam a morrer de fome porque deixam de comer para consumir a droga. Considerando o poder notório que ela tem de motivar seres humanos, o entendimento da psicofarmacologia dessa substância pode gerar insights interessantes sobre aquilo que os seres humanos “verdadeiramente” valorizam na vida.
A psicofarmacologia da cocaína
A principal ação da cocaína no cérebro é a inibição dos transportadores de dopamina. Os transportadores de dopamina também são conhecidos como “bombas de recaptação”. Sua função é tirar cocaína da fenda sináptica e trazê-la de volta para dentro do neurônio. Esse trabalho diminui a atividade dopaminérgica, pois o neurotransmissor só produz seus efeitos, via de regra, quando se liga a um receptor — e para isso ela deve estar na fenda sináptica, que é onde o milagre da neurotransmissão ocorre.

Ou seja, a cocaína potencializa a ação dopaminérgica no cérebro. Isso ocorre em vários locais, porque há várias vias dopaminérgicas diferentes, com funções diferentes, influenciando processos mentais diferentes, incluindo inteligência, psicose, movimento e até lactação.

Hoje, vamos focar na via mais icônica: a mesolímbica. A potencialização da atividade dopaminérgica na via mesolímbica é considerada a base neurobiológica da euforia e do efeito reforçador de todas as drogas de abuso amadas pelo ser humano (e por outros animais). É o “aumento de dopamina” no núcleo accumbens, estação final da via mesolímbica, que faz as drogas serem prazerosas e viciantes.
O hormônio do prazer
Popularmente, a dopamina é conhecida como um dos “hormônios do prazer”. De fato, até a década de 1990 o consenso científico era que a dopamina mediava a sensação de “gostar” de algo. Hoje em dia, essa noção mudou. Atualmente, a dopamina é mais entendida como responsável pelo “querer” do que pelo “gostar” — e você deve saber que nós podemos muito bem desejar muito coisas (ou pessoas) das quais não necessariamente gostamos.
Ou seja, a dopamina mesolímbica não gera prazer hedônico. Ela apenas nos motiva a buscar mais sensações positivas e sinaliza aqueles comportamentos que nos aproximam das recompensas. O que a cocaína faz é potencializar esse poder motivacional. A dopamina nos faz querer com mais intensidade tudo que queremos: seja comida, água, sexo, dinheiro… ou até cocaína.
Parece banal, mas a mudança de paradigma é importante: a dopamina não sinaliza a vitória em si. Ela sinaliza o caminho certo.
O sentido da vida
Em geral, as pessoas tendem a associar o “sentido da vida” à felicidade, e a felicidade é mais ou menos entendida como um estado perene e razoavelmente constante de bem estar. Este é o “destino” que grande parte de nós busca: ser feliz, chegar lá, sentir o gosto da vitória, experimentar o doce do prazer.
Mas a cocaína está aí para nos mostrar que estamos errados. E nós não a podemos ignorar, pois nós sabemos como ela é poderosa. Não importa o quão bonita seja sua filosofia, ela nunca será real e inegável como os efeitos sublimes e devastadores da cocaína são.
E o mecanismo pelo qual a cocaína gera a intensa euforia característica de sua intoxicação mostra que nossa grande motivação para viver é em grande parte resultado da busca pelas recompensas, e não pela posse delas em si.
Nós gostamos de subir escadas, não de admirar a vista do topo. Nós gostamos de correr, não de cruzar a linha de chegada. O fim da estrada é apenas um limite arbitrário que impomos a nós mesmos para que não morramos famintos enquanto buscamos outra dose de dopamina mesolímbica.
A vida não serve para ser feliz.
No fim, a estrada é a recompensa. E é por isso que a corrida de ratos nunca vai acabar.
Super interessante o artigo, parabéns! também me interesso sobre existencialismo, pela busca sobre o sentido da vida. Acredito ter encontrado a resposta definitiva com base na Teoria do Infinito Bilateral que rechaça a Teoria do Big Bang. A Teoria do Infinito Bilateral é válida tanto no contexto religioso (criacionista), quanto no contexto científico e filosófico. Explico melhor em meu artigo: https://davipinheiro.com/qual-o-sentido-da-vida/
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