Segundo as informações que tenho sobre o caso de Mariana Ferrer — que são poucas —, trata-se de uma acusação por estupro, em que não há questão sobre se houve ou não o ato sexual. O que está em questão, portanto, é, unicamente, se houve ou não consentimento por parte da vítima (ou “suposta vítima”, se formos preciosistas com a terminologia).
Dois aspectos do caso me chegaram com mais intensidade. Digo que me chegaram porque eu não fui atrás para investigar; simplesmente foram duas informações que apareceram para mim repetidamente nas minhas leituras de jornais, redes sociais etc.
Uma foi a referência ao tal “estupro culposo”, e outra foi a que o acusado foi absolvido por falta de provas de que a vítima não tinha condições psíquicas de consentir no momento do ato sexual.
Eu acho que a referência ao estupro culposo, embora chocante, não é a parte absurda da história. Se entendi corretamente, a menção a essa figura inexistente foi justamente uma tentativa (muito infeliz, mas ainda assim) do promotor de arguir que, sem prova do dolo acerca da violação (sexo sem consentimento), não é possível a condenação, justamente porque “não existe estupro culposo”. Em termos de lógica pura e simples, se for isso o que ele quis dizer, ele não cometeu um engano jurídico, já que de fato a figura não existe.
A outra parte do caso que ensejou muita comoção foi o tratamento espantosamente agressivo que o advogado do acusado reservou à vítima, e o fato de que aparentemente outras pessoas que participaram da audiência nada fizeram para intervir.
Aqui, o que eu tenho a opinar é que, a meu ver, o que o advogado estava tentando fazer é atenuar a culpabilidade do seu cliente dizendo que a vítima, por seu comportamento prévio e em circunstâncias não relacionadas ao momento em discussão, de alguma forma havia renunciado previamente ao seu direito de se recusar a ter relações sexuais com alguém.
Acho que essa é a única forma de descrever racionalmente a ideia de que, ao mostrar que a vítima havia, p.ex., posado para fotos em posições ‘sensuais’ de alguma forma tinha alguma relevância para o caso que se estava julgando. A mensagem, ali, era a de que ela era uma “puta” (não no sentido da profissão, mas no sentido pejorativo mesmo) e que, como tal, não tinha direito de dizer “não” ao seu agressor.
Do meu ponto de vista, isso não tem a menor lógica. Aliás, mesmo que ela tivesse, p.ex., postado em redes sociais alguma coisa do tipo “eu faço sexo com qualquer um”, mesmo assim seria muito difícil de arguir de maneira humanamente convincente que ela teria, de maneira eficaz, renunciado ao direito de se negar a fazer sexo com alguém em uma situação concreta.
Digo isso porque no Direito Privado, que costuma ser menos protetivo que o Penal, por regra não se admitem renúncias prévias gerais, que se pretendam abranger escolhas que ainda não se apresentaram de maneira definida. Vale dizer, eu não posso renunciar abstratamente ao meu direito de voto como acionista em uma companhia, p.ex., mesmo que eu tenha expressamente manifestado isso por escrito “com firma reconhecida”.
Se é assim em um âmbito de direitos que são meramente patrimoniais, me parece que qualquer argumento nesse sentido para justificar que a vítima em questão de alguma forma teria sinalizado previamente um consentimento geral e irrevogável a qualquer ato sexual seria imediatamente de se afastar. Portanto, o fato de ela ter saído em fotos em qualquer pose ou atitude era absolutamente irrelevante para o desfecho do caso.
Agora, não serei eu ingênuo a ponto de dizer que eu não entendo o que o advogado estava tentando fazer: ele estava tentando tirar vantagem de um preconceito que é muitíssimo presente na mente de muitos ainda, que vai exatamente nesse sentido, de que se a mulher sinaliza qualquer sexualidade, ela automaticamente se torna juridicamente “impossível de estuprar”, não porque não possa ser vítima da violência, mas sim porque eventual recusa dela em participar de um ato sexual não tem o efeito jurídico de converter seu agressor em um violador.
Não seria o primeiro nem o último advogado que teria tentado essa estratégia: tentar desqualificar uma vítima de agressão “diminuindo-a” a partir de um estândar moral atrasado para, com isso, afastar a ilicitude ou, pelo menos, reduzir a gravidade da conduta do agressor.
Coloca-se aí uma situação muito complicada: se eu fosse esse juiz, a minha reação inicial seria imaginar que, se essa é a melhor defesa que o seu advogado consegue apresentar, é porque os fatos sugerem que realmente não teria havido consentimento. Pelo que soube, não é o que aconteceu no caso, já que o acusado foi absolvido.
Como jurista, me sinto praticamente na obrigação de dizer que, sem ter tido acesso às provas do caso, não me é possível saber se a decisão de absolvição poderia ter sido baseada em outros elementos mais convincentes que essa defesa.
Agora, como cidadão e como pai de uma menina, me entristeceria muito ter que explicar a ela (como provavelmente um dia ainda terei — ela é muito jovem e por enquanto não entende nada disso) que ela tem que estar preparada para viver em um mundo de “duplo estândar”: ao mesmo tempo, ensinar a ela que ela moralmente está amparada para ser livre, mas deixá-la ciente de que, na prática, talvez ela não tenha um direito de sê-lo, porque muita gente não compartilha desse entendimento — incluindo-se, aí, tristemente, advogados, juízes e promotores.

Publicado originalmente aqui.
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