A medicina é antiga como prática, mas nova como ciência. Os antibióticos existem há menos de um século. As técnicas de ressuscitação cardiopulmonar existem há uns 50 anos. O ATLS existe há pouco mais de 40. O uso de betabloqueadores para insuficiência cardíaca começou há menos de 30. O genoma humano completo foi sequenciado pela primeira vez há menos de 20. Até ano passado, nós usávamos agonistas beta-adrenérgicos como terapia isolada no tratamento da asma!
A medicina é nova. E tem coisa demais para acontecer daqui em diante.
Como será o futuro da medicina? Este é meu palpite.
Consultórios inteligentes
Por increça que parível, alguns setores do Hospital de Clínicas de Uberlândia (hospital ligado à Universidade Federal de Uberlândia, um dos maiores hospitais universitários do Brasil) ainda usa papel para evoluir pacientes (no alojamento conjunto, por exemplo). Pedidos de exames, internações e receitas ainda são em grande parte feitos por papel.
Em 2020, o papel já é uma tecnologia de mais de 2020 anos de idade.
Quando não usamos papel, usamos computadores antigos, com programas dignos da década de 90 (quando começamos a usar betabloqueadores na insuficiência cardíaca e ainda não conhecíamos o genoma humano). Os prontuários dos pacientes do hospital não são integrados com os prontuários da rede de saúde (UBSFs e UAIs), então não temos acesso a todas as informações do paciente. Isso gera gastos desnecessários com pedidos de exames repetidos, perda de tempo e ineficiência.
E estresse para toda a equipe cuidadora.
Depois de entrevistarmos o paciente no corredor e anotarmos tudo em um pequeno pedaço de papel surrado, passamos o caso para o chefe, digitamos tudo (demoradamente) no computador, perdemos as anotações porque o programa travou, refazemos tudo, pedimos uma caneta emprestada para o colega para preencher um pedido de radiografia de tórax, imprimimos a prescrição, pegamos o carimbo, notamos um erro na prescrição, refazemos o documento, imprimimos de novo, carimbamos e levamos para a equipe de enfermagem. Depois, voltamos para conversar com o paciente.
Ou seja, 90% do trabalho médico é isolado, mexendo no computador, preenchendo papel, brigando com os softwares ruins que usamos. Só 10% é conversando e examinando o paciente. (Números claramente inventados, tirados da minha cabeça.)
Agora, imagine o futuro.
Imagine um consultório em que você chega e se senta e o médico está olhando para você, sem se preocupar com o computador. Você conta que está com dor de cabeça e uma assistente de voz (no teto, ou na mesa, ou em algum lugar que você nem percebeu) registra tudo que você disse.
Sua voz é automaticamente transformada em texto pelo software da clínica. Enquanto você fala, a assistente de voz capta suas queixas, o programa transcreve e automaticamente identifica as palavras-chaves.
Cefaleia (você disse “dor aqui assim” e o médico falou “aqui no lado da cabeça?” e você respondeu “sim” e o programa identificou que seria uma “cefaleia”), região parietal esquerda, duas vezes por mês, forte intensidade, melhora com AINEs, dificulta estudo para faculdade.
E todo o tempo, o médico não tirou a atenção do paciente. Ele não precisa parar de entrevistar o sujeito para digitar nada. Ele não precisa digitar, apagar, escolher as palavras certas, pensar em como escrever de forma lógica.
O computador faz tudo isso. A única preocupação do médico é atender o paciente.
Depois disso, o médico vai para o exame físico. Ele pega todos os sinais vitais do paciente e fala em voz alta.
“Sua pressão está doze por oito”, “seu coração está a 70 batimentos por minuto”, “sua frequência respiratória está em 14”.
E a assistente de voz capta e registra tudo: PA 120/80, FC 70, FR 14.
“Bom estado geral, nenhuma alteração de pele, hidratada, sem alteração de consciência, boa perfusão… Tudo ótimo”.
E a máquina faz seu serviço: BEG, MCHAAA, LOTE, BPP.
Mais do que captar e registrar, agora que a máquina já tem os dados da entrevista e do exame físico, ela já pode analisar os dados e propor um diagnóstico ou pelo menos levantar hipóteses.
A máquina sugere o diagnóstico de enxaqueca sem aura. O médico já sabia, mas pelo menos agora ele não precisa digitar isso.
Sabendo a principal hipótese, a máquina também pode propor uma conduta. O médico sabe que em geral não são necessários exames complementares para enxaqueca, mas a máquina deixa isso claro e registra em prontuário a sua fonte científica, o que deixa o médico muito mais à vontade para liberar o paciente sem pedir uma tomografia e explicar para ele por que o exame faria mais mal do que bem naquela situação.
Mais que isso, o programa identifica o prontuário do sujeito e acessa uma tomografia feita há um ano, devido à mesma queixa. Exame normal segundo o algoritmo do programa. Deseja submetê-lo a uma segunda opinião via telemedicina? Acho que não é necessário.
Nesse ponto do futuro, programas analisarão exames de imagem com mais acurácia do que radiologistas.
O paciente, que na verdade é uma jovem universitária sem fatores de risco para doenças específicas, pergunta sobre “exames de rotina”.
O médico sabe que ela não precisa de exames de rotina neste momento, exceto o famoso Papanicolau, porque ela tem 26 anos e é sexualmente ativa, além das sorologias. Mas, caso haja dúvida, o computador já entendeu a pergunta da jovem, já viu que ela tem um Papanicolau sem alterações ainda deste ano, e apresenta os exames que são recomendados para ela neste momento: apenas sorologias de doenças sexualmente transmissíveis, caso ela deseje. As fontes estão lá, de novo, com links.
O programa identifica sorologias antigas da paciente, pois está tudo no sistema. Mas o médico não consegue ver o resultado, pois os exames são sigilosos. Ele pergunta para a paciente e ela diz que já fez, sim, as sorologias, mas que gostaria de repetir apenas para desencargo de consciência. O médico diz que vai solicitar os exames e aproveita a oportunidade para falar sobre métodos contraceptivos e proteção contra ISTs. Neste momento, o programa lembra da prevenção do tabagismo nessa faixa etária, e o médico aborda o assunto.
Ele solicita os exames, mas não precisa pesquisar o nome de cada sorologia e clicar em “Solicitar”. Foi só dizer “OK” para a máquina, que já havia proposto os tais exames. Ela também já fez a receita com remédios para o tratamento abortivo das crises e, claro, com as orientações devidas. O retorno já está marcado e há um lembrete programado para chegar ao celular da paciente um dia antes da consulta (e uma semana antes também, por preferência dela).
No fim da consulta, a paciente avalia o médico e o médico avalia a paciente. O programa colhe os dados da consulta e se torna um pouquinho melhor do que já era. A língua um pouco presa da paciente vai ajudar o programa a reconhecer alguns fonemas que podem ser mais difíceis. Ele também notou que essa paciente costuma chegar um pouco mais cedo do que o horário da consulta, o que pode ser uma informação útil para o médico.
A consulta é mais rápida do que costumava ser, mais barata, mais segura, mais eficaz e mais satisfatória para ambos, paciente e médico.
E não gasta papel.
Telemedicina
Outra coisa muito pouco eficiente do nosso sistema de saúde é a necessidade de ir ao médico sempre que o paciente precisa de uma avaliação médica. Claro, às vezes é necessário que haja um exame físico presencial, e às vezes é necessário ter acesso a toda a tecnologia pesada que um grande hospital dispõe.
Mas boa parte das consultas ambulatoriais poderiam ser resolvidas à distância: resultados de exames, ajuste de medicamentos para diabetes, dislipidemia, hipertensão etc., síndromes gripais sem sinais de alarme, síndromes febris de início recente, diarreias sem sinais de alarme, dúvidas sobre consultas passadas etc.

Eu já tive que pedir para um paciente ir até o hospital para pegar um resultado de exame porque não me autorizaram falar o resultado por telefone. E o exame era “negativo” de forma que o paciente estaria “curado” e sem necessidade de prosseguir com nenhum tratamento.
A preocupação, claro, era a segurança e a intimidade do paciente. Mas há formas eficazes de garantir isso sem obrigar o paciente a sair de sua rotina para ir ao hospital.
A telemedicina será um ganho inestimável para a medicina. A maioria das consultas, que são simples, serão resolvidas por telemedicina. Além disso, ela aumentará o acesso a grandes especialistas: um médico de Araguari poderá discutir um caso difícil com uma equipe de ponta lá de São Paulo. O conhecimento técnico da equipe de São Paulo estará disponível no interior do Amazonas, e não apenas lá no hospital de alta classe da capital.
Aplicativos inteligentes
Tanto no consultório inteligente como na telemedicina, um elemento vital para o sucesso do serviço médico é o software que está por trás de toda a inteligência.
Além de captar e tratar dados, o aplicativo precisa ter uma interface fácil, ser rápido, não travar, ser seguro (vide vazamento de dados recente do Ministério da Saúde) e ser barato o suficiente para ser utilizado pelas clínicas.
É claro que não é fácil fazer isso. Quando eu tiro sarro dos sistemas arcaicos e ineficientes do HCU, eu estou bem ciente de que é um empreendimento custoso resolver esse modo de operar.
Na minha cabeça, existem muitos espaços que um bom aplicativo médico pode ocupar. Teoricamente, um mesmo aplicativo pode:
- Captar as informações do consultório (pela assistente de voz);
- Transcrever o áudio;
- Identificar palavras-chaves da entrevista e exame físico;
- Identificar síndromes e entidades clínicas com base nas informações colhidas;
- Acessar o histórico médico do paciente e incluir as informações relevantes para a consulta atual (incluindo exames passados, receitas antigas etc.);
- Avaliar exames laboratoriais e de imagem (interpretá-los);
- Propor diagnósticos, tratamentos, propedêutica etc.;
- Gerar automaticamente receitas e orientações;
- Gerar automaticamente links para referências sobre as decisões tomadas para o médico e para o paciente;
- Gerar e enviar para o paciente resumos sobre seus diagnósticos, com a autorização dele (aqui, uma oportunidade para médicos criadores de conteúdo, que podem escrever e gravar vídeos esclarecedores para o paciente, em diferentes níveis de profundidade, de acordo com o interesse e o conhecimento prévio do paciente);
- Da mesma forma, o aplicativo pode gerar artigos e disponibilizar informações para o próprio médico (uma espécie de Uptodate ou Whitebook com sugestões baseadas no cotidiano do profissional);
- Gerar anúncios para os medicamentos receitados, comparar preços, oferecer delivery etc. (aqui, uma possível fonte de receita para o aplicativo);
- Gerar anúncios para outros médicos, caso o paciente precise de encaminhamentos (outra possível fonte de receita);
- Intermediar o pagamento do serviço pelo paciente (outra fonte de renda);
- Ajudar a gerir financeiramente a clínica que oferece o serviço (coordenar pagamentos, oferecer crédito, oferecer facilidades, diminuir a ineficiência com inteligência etc.).
Como eu disse, fazer isso é bizarramente complicado. Mas existem gênios trabalhando para fazer coisas assim virarem realidade. Dois exemplos daqui de Uberlândia, Minas Gerais, são Roberto Botelho e João Gabriel Alkmin. Falo dos dois porque são os rostos que conheço, mas é claro que há dezenas de pessoas trabalhando junto com cada um deles.
Roberto Botelho, cardiologista hemodinamicista, um cara que sabe medicina pra car***o, anunciou ano passado a criação de um aplicativo que detecta infarto agudo do miocárdio pelo Apple Watch. Com inteligência artificial, o aplicativo “faz um eletrocardiograma” no paciente, identifica a doença, aciona a equipe de socorro, avisa o paciente e… diminui mortalidade.
Ou seja, tudo isso não gera apenas conforto e menos gastos: no fim, o que temos é menos gente morrendo.
João Gabriel, por sua vez, é Forbes Under 30 e cofundador da Vitta, empresa de saúde que trabalha com softwares para clínicas, gerencia pagamentos médicos e agora tem um plano de saúde voltado para startups. Recentemente, a Vitta foi incorporada à Stone.
Há muito que pode ser feito e há caminhos para chegar lá.
Imunobiológicos e drogas-mísseis
Imunobiológicos são drogas caras que funcionam de forma muito específica, atacando moléculas específicas em vias do metabolismo específicas. Eles são muito usados na reumatologia e na oncologia, áreas que sofrem com a escassez de remédios “que funcionam”.
Atualmente, são cada vez mais usados. Há poucos dias, vi algo sobre imunobiológico para transtorno de ansiedade generalizada. Em breve, devemos usar para outras doenças de todo tipo.
E não são apenas imunobiológicos. A medicina tende cada vez mais a usar medicamentos certeiros, individualizados, feitos sob medida para o paciente e para sua doença.
Para explicar com uma alegoria:
Hoje, usamos remédios que são como bombas: eles podem atacar a doença, mas eles também atrapalham várias outras coisas. A tendência é usar cada vez mais remédios que são como mísseis: eles são inteligente e vão atrás apenas do seu alvo, sem atrapalhar o resto do organismo.
Os novos tratamentos médicos serão baseados em moléculas cada vez mais específicas e a prescrição será baseada não no diagnóstico e na epidemiologia, mas nos dados moleculares e genéticos do paciente.
Eu acredito que o mercado canabinoide vai crescer na próximas décadas, mas minha aposta é muito mais no mercado recreativo do que no mercado médico.
Bombas de infusão inteligentes
Hoje, usamos bombas de infusão para medicamentos que devem ser bem titulados. Um anestesista em uma cirurgia deve monitorar os dados vitais do paciente e alterar as doses das drogas de acordo com esses dados.
Imagine agora uma bomba de infusão inteligente. O anestesista coloca comandos na máquina e ela mesma monitora o paciente e titula as drogas de acordo com a resposta fisiológica dele. Claro, o anestesista poderá intervir quando quiser. Mas ela fará a maior parte do trabalho.
Pode parecer um pouco inverossímil, mas não é realmente: trata-se basicamente de ler dados e gerar respostas, e máquinas fazem isso muito bem.
Afinal, os monitores apitam quando percebem uma pressão muito baixa ou um ritmo estranho. A diferença é que, além de apitar, eles vão agir no paciente.
O que você acha?