Aquilo que você sabe modifica aquilo que você vê.
Vamos começar por esta máxima que, de tão óbvia, passa despercebida.
O que sabemos altera vertiginosamente nossa perspectiva e como encaramos o mundo e suas complexidades. E em uma sociedade que gira em torno de personas construídas online, nossa interação nas redes sociais, nossa maior forma de interação coletiva, pode ser linda ou tragicamente desastrosa.
Penso que, como mulher de classe média alta, extremamente privilegiada com as melhores oportunidades e uma vida emocional (quase sempre) estável, tenho demandas muito diferentes de outras mulheres, de outras classes, com outros privilégios e, portanto, com outras concepções do que é ser mulher e de como isso impacta nossa existência neste plano. É algo claro, mas raramente percebo o quanto afeta meu comportamento acerca daquilo que sou, e principalmente daquilo que quero ser, autoafirmado no que defendo ou repugno nas mídias digitais. Nem sempre o que expressamos para o mundo corresponde ao nosso melhor. Às vezes, é apenas um modo de nos afastarmos das piores coisas que conhecemos sobre nós, como também, um desejo de ser tudo aquilo que somos em potência.
É bem verdade o que grandes mestres da teoria nos disseram, como Aristóteles e sua concepção de que somos seres sociais, que não suportam ou não sobrevivem sozinhos. Nos dias atuais, nossa expressão coletiva vem de um pavor de não nos posicionarmos nesse terreno tão polarizado ideologicamente, por vezes, perdoe-me a franqueza, emburrecido pelo maniqueísmo, pela necessidade quase patológica de dizermos o que é certo ou errado, moral ou imoral, sobre nós e mais ainda sobre os outros. Nos tornamos, nos mais diversos aspectos, juízes e doutores do que acreditamos, sem nos dar conta de que somos socialmente castrados ao sermos instituídos em uma comunidade que já tem suas normas e valores.
Afirmamos que nossa geração atual está quebrando padrões e reorganizando as regras do jogo. Puro ego. Há sempre uma geração prestes a mudar tudo. Nós só não vivemos suficiente para acompanhá-las no passado e no futuro.
Mas o que isso tem a ver com a pornografia? Absolutamente tudo.
Já adianto que não tenho nenhuma formação profissional para debater sobre paradigmas biológicos sobre o consumo excessivo de sexo, seja visual ou carnal, e o que ele pode acarretar para a saúde física e emocional do indivíduo. Há excelentes textos que discutem tais circunstâncias, que não serão abordadas aqui, pois pretendo fazer uma análise psicossocial das intempéries desse tema.
Entendo o óbvio: somos introduzidos ao sexo da maneira mais emburrecida possível. Temos vergonha de nossos corpos. E do que eles podem fazer entre quatro paredes. Mais do que isso: ficamos constrangidos porque sentimos que precisamos ser, novamente, especialistas nesse âmbito para podermos nos encaixar nas perspectivas sociais do que é ser homem e do que é ser mulher. De como ambos devem se portar. Sim, admita, há um código de ética nas relações sexuais. E o mais chocante: esse manual de instruções é concebido durante o período mais frágil da vida humana, a doce e conturbada, adolescência.
A limitação à qual somos submetidos, nos mais ”abertos” núcleos sociais, nos faz buscar, na vida cotidiana, meios para acompanhar nossas mudanças, que são, quase sempre, explicadas baixinho, de portas fechadas, dotadas dos “ismos’’ tão polêmicos da atualidade e do papel que devemos exercer sobre eles. Daí, confusos pelo coquetel hormonal e ávidos pela curiosidade, chegamos à famigerada indústria pornográfica.
Cruel. Violenta. Repugnante, em muitas esferas. Problemática, em tantos aspectos. Vetor da escravidão sexual, da pedofilia, do abuso psíquico e físico, do tráfico de pessoas. Veículo de informações que jamais corresponderão a realidade do ato sexual em sua totalidade, de imagens recortadas, convenientemente organizadas para atrair as mentes mais conturbadas ou mais inexperientes. O mercado das fantasias mais mirabolantes, interpretadas por pessoas que estão à margem da sociedade, que de alguma forma enxergaram na venda de seus corpos uma alternativa para minimizar a rejeição que lhes foi imposta, seja essa de qual espécie for. O sexo vendido como um produto, cuja matéria prima é o corpo de alguém. Não é incomum encontrarmos profissionais do sexo, em sua maioria, mulheres e homossexuais, mutilados física e psiquicamente. Não há dados para isso, mas não consigo imaginar uma mulher como eu, dentro de boas condições sociais, fingindo orgasmos em frente a uma câmera como um ofício do qual se orgulhe. Sendo submetida a agressões emocionais e, nas melhores firmas desse empreendimento, a discriminação, que pode a colocar facilmente como mais um número estatístico de estupro, por exemplo. Nunca também vi um pai de família dizer: minha menininha, que linda, será uma grande atriz pornô.
Indigesto, né? Também acho.
Além disso, não me recordo de escutar nenhum profissional da área se orgulhar, publicamente, de seu trabalho. E olha que nem estamos aprofundando nas atrocidades produzidas e originadas do comércio pornográfico, citadas acima.
No entanto, mais grave do que as causas que pontuei desse consumo, de acordo com o que presenciei no meu grupo social, e das nocivas consequências da naturalização contemporânea dessa prática, é a ignorante hipocrisia da humanidade ao tratar de assuntos como esse, que corroem sua moralidade, tão convenientemente construída.
Quando viemos a este mundo, assinamos um contrato social velado que nos permite sermos causa e consequência de tudo que acontece globalmente. Simplesmente por estarmos vivos e compormos essa estrutura.
Aqui, não será um espaço para julgamentos. Nem conselhos.
Mas permitam-me fazer uma observação: é importante gastarmos um tempo entendendo os benefícios e os malefícios pessoais e coletivos que a suas decisões como consumidor trarão a curto e longo prazo para sua sexualidade e o bem estar social, pois sejamos francos: somos os grandes responsáveis pela fome na África, pelos suicídios no Oriente e por qualquer coisa grotesca que lhe tire o sono.
Sei que já ouviram falar dos casos de escravidão da Zara. Ou da produção de miúdos do McDonalds. Ou do tráfico de pessoas nas montadoras mexicanas. Certo? Mesmo assim, permanecemos assíduos com nossas roupas de grife, iPhones para cima na balada, para um pós no Mc, esperando ansiosamente pelo sexo, sozinhos ou acompanhados, no interior de nossas camas quentinhas, em um lar bem estruturado, esperando o momento da solidão para praticarmos nossa intimidade. No silêncio. Porque temos que ter vergonha de sermos seres sexuais.
O que sabemos modifica aquilo que vemos.
No fim, não sejamos hipócritas: a pornografia, como qualquer outra escória social, que naturalizamos de acordo com nossa conveniência, é apenas mais uma forma de nos provarmos contra ou a favor dos valores morais que queremos perpetuar ou romper, com nós mesmos ou com o núcleo em que estamos inseridos.
Vamos aproveitar o privilégio de estarmos em casa, aptos a consumir mais do que nunca, para olharmos para nossas feridas internas e nos perguntarmos se o que somos sozinhos é compatível com o que somos nas redes sociais e na vida coletiva.
Ficarei imensamente realizada se você for fielmente coerente com seus princípios “no escuro’’, pois eu nem sempre sou. Mas busco ser. É um processo. Empodere-se de delimitar os seus, assumindo a responsabilidade do “efeito dominó’’ que suas ações impactam.
Como na pornografia ou na ausência dela, cada um tem suas demandas.
Honre as suas. Em sua totalidade.

O que você acha?