Esse é o título de uma música muito profunda do Nelson Gonçalves.
Confesso que eu não a conhecia. Estava escutando minha música preferida, do músico que mais me traz paz, Cartola, quando o título “Quando eu me chamar saudade” despertou minha atenção.
A música fala sobre morte, a música fala sobre o tempo, e sobre a finitude dele. Mas, mais que isso, fala sobre a inutilidade de se correr atrás do que já se foi. É a poetização da famosa frase: “não adianta chorar sobre o leite derramado”.
Na minha opinião, essa é a maior missão cotidiana que existe para o ser humano: buscar não se arrepender e não deixar que as coisas escorram pelos nossos dedos.
Temos uma facilidade enorme de abandonar as coisas — seja por medo, seja por orgulho, seja por não saber o que fazer. Independente do motivo: gastamos muito nosso tempo de maneira inútil. E longe de mim fazer uma defesa do sistema de produção capitalista desenfreada. Na verdade não tem nada a ver com isso.
Não serei hipócrita, afinal, nos últimos anos a maior parte do meu tempo foi gasta assim: eu acordo, estudo, me exercito, estudo mais, estudo mais e estudo mais. E planejo, penso no futuro, estruturo cada pedacinho dos meus sonhos. Nos fins de semana, eu saio. E acho que, com algumas poucas variantes, a maior parte da vida de vocês — pessoas que leem meus fragmentos de neurose — tem um cotidiano parecido.
Mas o que eu estou discutindo, neste texto, são as pausas e as “vírgulas” que existem no meio do caminho. A vida é louca. A vida é corrida. Mas será que temos tempo de estarmos presentes antes de tudo virar saudade?
Esses dias, por algum motivo que levou a algum assunto, perguntei pra uma pessoa muito amada se ela trocaria algumas decisões da vida dela — em outras palavras, se ela viveria diferente. A gente estava caminhando para o carro, depois de uma tarde muito gostosa de conversa e de risadas. Eu estava muito feliz de estar ali, com aquela pessoa, antes que ela viajasse e que eu sentisse saudades dela (tudo bem que era uma viagem de um dia, mas eu sou carente, apegada e dramática).
A grande questão é que na hora eu pensei: eu não mudaria nenhuma grande escolha da minha vida, porque, se mudasse, não estaria aqui neste momento, tão feliz. E olha que minha vida não anda lá essas coisas… Mas eu não mudaria nada. (Spoiler: ele disse que mudaria, rs. This is life.)
Acho que, se eu mudasse, além de não estar aqui agora, também não chegaria ao ponto a que cheguei: a consciência da luta incessante contra meus demônios em prol de viver uma vida com poucos arrependimentos e muita presença.
Antes eu costumava ter preguiça de jogar baralho com minha avó. Hoje em dia, jogamos até ela falar “é melhor parar, senão o labirinto vai atacar”. Antes eu achava completamente desnecessário contar com todos os detalhes as loucuras e fofocas para minha mãe. Hoje em dia, frequentemente, conto todos os detalhes, das 8 da manhã até as 12 horas, quase todos os dias, e isso não é um tempo perdido. Antes tinha uma forte resistência em dizer para minhas amigas que amo muito todas elas. Hoje em dia, não tenho mais tanto medo de aceitar que, na grande maioria das vezes, meu jeito de cuidar e amar pode ser um tanto quanto avassalador e confuso, mas que isso “está tudo bem” também.
Acho que a lista é grande. E eu ainda deixo muito escapar pelos meus dedos.
Mas agora acredito que, além da maturidade e do autoconhecimento que adquiri nos últimos tempos, percebo que a presença e o fazer sem esperar nada em troca (a não ser lembranças para quando a saudade chegar) é o suficiente. Mas digo mais uma vez: é um processo difícil. Pelo menos para mim.
Não carrego nenhum pesar ou grande arrependimento. E eu gosto das lembranças de coisas que hoje são saudades.
Poderia ter sido uma aluna melhor, e isso talvez me cause um pequeno arrependimento. Porém, se eu não tivesse feito competições com a minha amiga Shyr de quem passava mais rápido as folhas do caderno sugando o papel com a boca, hoje em dia a gente não se lembraria disso em todos os nossos encontros, com muita risada e saudade.
Se eu não tivesse escolhido ir à missa todos os domingos com meus pais por muito tempo, mesmo sem acreditar em nada, eu não conheceria o gosto peculiar do pastel de palmito com suco de melancia que só existe na pastelaria do Centro, onde íamos sempre no fim da celebração. Essa combinação me lembra muito meu pai, e acho que vai ser sempre assim.
Do mesmo jeito, se eu não tivesse escolhido ficar na sala assistindo programas insuportáveis de futebol aos domingos de manhã durante boa parte da minha infância, eu não teria me apaixonado pelo Corinthians e não teria viajado o Brasil pra ver o Coringão, junto com meu pai e meu irmão. E se não fosse assim, eu não teria como contar as histórias de todas as pérolas e mancadas que meu pai deu em literalmente todos os lugares a que fomos assistir aos jogos.
Se eu escolhesse ser uma irmã um pouco mais irritante, eu não teria construído uma relação de cumplicidade com meu irmão. Assim, eu não teria conhecido o rock nacional. Na minha vida não teria Detonautas, CPM22, CBJr etc. Isso por si só seria uma tragédia. Mas eu também não teria uma memória musical tão forte como tenho quando escuto Regina Let’s Go: independente de onde eu esteja, se essa música toca, eu me lembro do meu irmão. E fico feliz. Sou muito sortuda de ter alguém que é pura bondade e doçura do meu lado.
Se eu tivesse escolhido ser uma filha e uma criança um pouco mais chatinha e irritadiça, não acordaria todos os dias de manhã correndo para a cozinha. Fazia isso só para minha mãe me pegar no colo, me abraçar e dizer “bom dia, flor do dia”. Aí, depois disso, ela me colocava em cima da mesa e me entregava meu leite com café e muito açúcar.
Até hoje, minha mãe faz o meu leite e do meu irmão. Ela não me pega mais no colo, nem me coloca em cima da mesa, mas, sempre que eu acordo ou chego em casa pela manhã, meu leite com café e muito açúcar está me esperando… E eu ainda não sei como eu vou resolver esse problema quando tudo virar saudade.
Na verdade, tem tanta coisa na minha vida que está prestes a virar só saudade que eu já estou sentindo o tamanho do problema.
O que eu vou fazer quando tudo isso se chamar saudade?

Você é minha saudade, Ju. O que faço com isso?
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