A maconha medicinal vive um dilema que poucas outras drogas vivem: a discussão sobre seu potencial uso farmacêutico é inevitavelmente contaminada por sua popularidade como droga recreativa. A morfina tem claras aplicações médicas e recreativas e ainda mais claros efeitos deletérios, mas o povo em geral não discute seu uso terapêutico — aceita-se que ela é útil e perigosa.
Obs.: Pelo menos no Brasil. Nos Estados Unidos, a epidemia do ópio é cada vez mais falada. E a cannabis entra no assunto, como forma de substituir os derivados do ópio. O problema está se tornando tão grande, que o ACLS, manual de ressuscitação cardíaca da American Heart Association, manda que profissionais de saúde do atendimento pré-hospitalar aplique naloxone, um antídoto para opioides, de forma rotineira em pacientes encontrados desacordados em suspeita de parada cardiorrespiratória.

Com a maconha é diferente. Seu efeito terapêutico é negado por quem não gosta de seu uso recreativo, enquanto seus efeitos deletérios são negados por quem gosta. E quem não vai com a cara da planta exagera seu potencial negativo, enquanto seus admiradores exageram seu potencial benéfico.
A verdade é que a maconha — principalmente na forma de concentrados de canabinoides — têm (poucas) aplicações terapêuticas bem embasadas em evidências científicas. Há três condições clínicas que reúnem as evidências mais robustas e completas para o uso medicinal da cannabis: síndromes epilépticas refratárias de tratamento particularmente desafiador; espasticidade decorrente de esclerose múltipla; e dor crônica — neste caso, como uma boa opção para reduzir o uso de opioides.
A seguir, um pequeno resumo de alguns estudos fortes que aprovam o uso de maconha para epilepsia refratária.
>> Effect of cannabidiol on drop seizures in the Lennox-Gastaut syndrome.
Estudo para avaliar efeitos do canabidiol oral nas crises convulsivas de crianças e adultos com síndrome de Lennox-Gastaut, em adição a medicamentos anticonvulsivantes tradicionais.
Características: ensaio clínico, randomizado, controlado, duplo cego.
N: 225 pacientes, 149 nos grupos de intervenção, 76 controles.
Duração: 28 dias.
Substância: solução oral de canabidiol (20 ou 10 mg/kg, divididos em duas doses por dia).
Resultado: diminuição na frequência de crises epilépticas, mas aumento de efeitos colaterais, nos pacientes tratados com canabidiol.
>> Cannabidiol in patients with seizures associated with Lennox-Gastaut syndrome.
Estudo com crianças de diversos países para avaliar a resposta de pacientes com síndrome de Lennox-Gastaut ao canabidiol oral, com ênfase na frequência das crises convulsivas.
Características: ensaio clínico, randomizado, controlado, duplo cego.
N: 171 pacientes, 86 no grupo de intervenção, 85 controles.
Duração: 14 semanas.
Substância: canabidiol oral (20 mg/kg, duas vezes por dia).
Resultado: diminuição na frequência de crises epilépticas, com efeitos colaterais bem tolerados.
Estudo para avaliar os efeitos do canabidiol (em adição a anticonvulsivantes convencionais) na frequência das crises convulsivas de pacientes com síndrome de Dravet. O foco do estudo foi utilizar a dose de 10 mg/kg, comparando seus efeitos à dose de 20 mg/kg.
Características: ensaio clínico, randomizado, controlado, duplo cego.
N: 198 pacientes, 133 nos grupos de intervenção, 65 controles.
Duração: 14 semanas.
Substância: solução oral de canabidiol (20 ou 10 mg/kg).
Resultado: diminuição na frequência de crises epilépticas nos grupos de intervenção, com melhor tolerabilidade ao tratamento na dose de 10 mg/kg.
Revisão sistemática da literatura avaliando a resposta de pacientes com epilepsia ao tratamento com drogas canabinoides e seu impacto na qualidade de vida desses pacientes.
Características: revisão sistemática.
N: seis RCTs (trials controlados e randomizados) e 30 estudos observacionais.
Resultado: em geral, o uso de canabinoides foi associado a menor frequência de crises convulsivas e mais qualidade de vida, mas também a mais efeitos adversos sérios. A maior parte dos estudos é focada em crianças com síndromes epilépticas graves e refratárias ao tratamento convencional.

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