Eu me lembro muito de estar na Tropeiro com minha família quando eu era criança, isto é, pré-adolescente, e um garçom bem branco e careca me chamar pelo nome:
— Nícolas, você aceita uma fatia de cupim ao alho formoso e suculento?
Ou seja lá que tipo de carne fosse. Eu gostava de todas.
Eu fiquei sem entender por que ele notara meu nome, mas descobri que era porque o sobrenome dele era Nicolini. Depois disso, ele sempre me chamava de Nícolas quando eu ia lá, e eu sempre procurava por ele quando chegava na churrascaria. Algum tempo depois, ele parou de trabalhar lá. Espero que ele esteja tendo sucesso no que for que esteja fazendo agora.
Mais ou menos nessa mesma época, eu li uma revista que chamava Men’s Health. Eu pronunciava “mensrilf” na época. Nome pouco acessível.
Nessa revista, tinha uma coluna em que um garçom respondia a perguntas enviadas pelos leitores. A ideia é que um garçom observa muitas coisas no bar, conversa com muita gente e sabe da vida. Igual o garçom Jorge, interpretado pelo Seu Jorge naquele filme brasileiro.
A noção de garçom que eu tinha na época era essa. Um sujeito gente boa, por vezes careca, que sabe da vida, gosta de conversar, sempre dá uns conselhos… Enfim, um camarada que fica lá o tempo inteiro ajudando, trazendo as coisas, sendo camarada.
Depois que assisti La vita è bella, passei a olhar de forma um pouco diferente o trabalho do garçom e, de certa forma, o trabalho de forma geral.
No começo do filme, o protagonista Guido, interpretado pelo mestre Roberto Benigni, está aprendendo a arte de servir com seu Tio Eliseo, para trabalhar com ele em seu restaurante. Seu tio então lhe diz, originalmente:
Tu stai servendo, però non sei un servo. Servire è l’arte suprema; Dio è il primo servitore. Dio serve gli uomini ma non è servo degli uomini.
Em tradução livre:
Você está servindo, mas não é um servo. Servir é a arte suprema; Deus é o primeiro servidor. Ele serve aos homens, mas não é servo deles.
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Gosto de pensar na humanidade como um grande organismo composto por células que chamamos humanos.
Nós não somos particularmente fortes, nem rápidos, nem grandes. O notável poder que o ser humano realmente tem é o de se unir com seus semelhantes para trabalharem juntos.
Até mesmo nossa inteligência é menos importante do que pensamos. O que chamamos de inteligência tem muito a ver com o acúmulo de conhecimento que o grande organismo humanidade conseguiu guardar por milênios. Uma criança humana abandonada à própria sorte, antes do processo de hominização, não nos parecerá mais inteligente do que um golfinho ou um macaco.
Porém, graças à colaboração de bilhões de humanos durante milhares de anos, o conhecimento coletivo da humanidade alcançou alturas inimagináveis. Descobrimos como polir pedras, cultivar terras, domesticar animais, construir cidades, atravessar mares, enxergar microrganismos, navegar céus, lançar satélites, curar doenças e conectar mais e mais pessoas.
É muito importante ter essa consciência de que um ser humano sozinho é ordinário, mas que a humanidade coletivamente é estrondosamente poderosa.

Um médico geralmente não sabe como um antibiótico é feito e não seria capaz de sintetizá-lo. Um químico, por sua vez, não seria capaz de diagnosticar um paciente e prescrever o melhor tratamento. Mesmo os engenheiros químicos de um laboratório serão responsáveis por tarefas específicas e dependerão de muitos outros profissionais para extrair, transformar e transportar a matéria-prima dos remédios. Além disso, o médico se utiliza do conhecimento de milhares de cientistas que atestaram a segurança e o potencial terapêutico da droga anteriormente.
Toda vez que dirigimos um carro, usamos um celular ou tomamos um antibiótico, estamos nos aproveitando dos serviços de milhões de seres humanos que vieram antes de nós.
O mínimo que poderíamos fazer, é claro, seria nos esforçar um pouco para contribuir também com esse grande organismo. Seja cultivando jardins, ensinando línguas, criando dispositivos eletrônicos ou pilotando máquinas, cada um de nós tem o necessário para de alguma maneira servir às outras células que formam nosso grande organismo.
E é por isso que toda vida humana é preciosa, pois todo ser humano contribui para a humanidade. Toda morte humana é um pouco a morte de cada um de nós e deixa uma lacuna irreparável em nosso grande organismo.
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Seja como garçom ou ator de cinema (ou médico, escritor, jardineiro, secretário), devemos sempre lembrar que estamos servindo alguém. Essa é a essência de todo serviço: tornar a vida de outras pessoas mais fácil e agradável.
Por isso, devemos reforçar constantemente em nossas mentes o objetivo final de tudo que fazemos: estudamos engenharia para criar soluções melhores para os problemas da humanidade no futuro; ensinamos inglês pensando nas portas maravilhosas que se abrirão a nossos alunos; cuidamos de jardins na esperança de colorir o dia das pessoas que passam por eles.
Ou seja, no final, trata-se sempre de ajudar outras pessoas. Isto é, servi-las.
Somos todos servidores. Eu e Nicolini, você e Guido, aquela garçonete simpática, e até o Seu Jorge.
O que você acha?