Nossos sambas, belos e dolorosos

Na maioria dos meus dias, escrevi mais como um método terapêutico para lidar com meus próprios demônios, sem que houvesse tanto apreço pela habilidade técnica, adição que eu tenho tentado fazer.  Então, passei a observar que escrever o que sinto é muito mais natural que escrever o que penso, especialmente se o que sinto é algum tipo de sofrimento.  O pensamento bem feito, antes de ser bem escrito, tem que ser fruto de uma batalha interna, entre várias versões divididas de você mesmo, sendo, sempre que possível, confrontado com o que é fato, diminuindo o ruído gerado pela nossa fértil imaginação, capaz de produzir diversas lógicas surreais. O sofrimento, não.  Já foi cantado que, pra fazer um samba com beleza, é preciso um bocado de tristeza. Parece que o sofrimento é naturalmente poético. 

Parece ser mais poético na mesma medida que conversa com todos de um jeito profundo e que, talvez até na maioria das vezes, precede a própria explicação bem elaborada daquilo que se sente. C. S. Lewis tem uma citação que diz que Deus sussurra nos nossos ouvidos através do prazer, fala conosco através da consciência, e grita através da dor. O sofrimento, assim como o que é belo, demanda ser percebido. 

Além da atenção do indivíduo, a dor dividida afeta a comunidade e a une. Brené Brown, professora da Faculdade de Assistência Social da Universidade de Houston, fez um livro explicando um estudo da anatomia do laço humano, dizendo que o que gera vínculo é a vulnerabilidade. Conseguir mostrar para o outro seus demônios internos gera identificação, saber que existe, ali no interlocutor, um ser que sofre como você, e conseguir demonstrar seu lado deformado em retorno, mostra que, em essência, comportamento e sentimento, temos muito em comum. O sofrimento escrito, mais facilmente poético do que a racionalização e análise de dados, conversa com todos nós. As elegias e cartas de amor que fazemos e encontramos na literatura muitas vezes representam algo que acontece de uma forma tão frequente e palpável, que, ainda que fictícias, são mais verdadeiras que a própria realidade.

A vida é sofrimento. Há um termo que está descrito na primeira verdade budista, que é Duhkha, que se refere não somente à dor, mas a todo grau de insatisfação pelo qual passamos constantemente: envelhecer, doenças, frustrações quanto a expectativas que nunca serão cumpridas e a simples ausência daquilo que nos traz tanto prazer. O desconforto é um estado obrigatório e constante. É preciso que encontremos uma forma de lidar com o estado de guerra permanente que é a existência. 

Para isso, um passo relevante é perceber somos bem mais nosso comportamento que nosso pensamento. A forma como nos manifestamos na realidade é, sempre, através de nossas atitudes. Os nossos pensamentos, quando compreendidos por nós mesmos, ficam guardados nesse enigma que é a própria mente. A versão que sua mãe conhece de você, que seu colega de trabalho conhece, ou mesmo quem cruza com você por poucos segundos acaba conhecendo, é a que é evidenciada através de suas ações, e não de seus motivos. Ignorando essa visão, tendemos a considerar que tudo é pensado e posteriormente executado. Quem me dera. Assim, adotamos, com frequência, uma postura reativa frente às mazelas diárias, quando, talvez, a resposta esteja mais próxima da contemplação do que da reação. 

Ao reagir ao que se sofre, corre-se risco de aumentar a própria dose de fel, pelo simples fato de considerar que há possibilidade de fuga do desprazer. Um dos princípios do mindfulness, um conjunto de práticas que visam a melhora da saúde mental através do desenvolvimento de mecanismos de coping, termo usado para descrever estratégias para se lidar com situações adversas, no indivíduo, é adotar a postura contemplativa, e não reativa. Passamos horas a fio realizando automatismos, perdidos nos nossos próprios pensamentos, quase sempre acerca de fatores que estão fora de nosso alcance. Quanto tempo já não foi perdido refazendo diálogos nos quais nos sairíamos tão bem com aquela resposta que agora parece óbvia, ou sem aquele trocadilho que parecia tão inteligente, mas se mostrou tão insosso; espremendo espinhas e pensando qualquer elucubração que, quando finalizada, é esquecida após alguns poucos minutos? Normalizar a experiência do desconforto e apreciá-lo com o máximo de atenção enquanto ele ocorre traz tranquilidade. Enquanto o nosso estado de quietude de mente for condicionado a qualquer fator externo a nós mesmos, corremos o risco de nos vermos reféns dele. Não podemos depender de um cenário favorável para estarmos bem, nem sempre ele está e nem sempre isso cabe a nós. 

Nossas desilusões serão frequentes, intensas e parte de nossa história. É importante que possamos apreciar a poesia delas e a maneira como elas nos tornam uma comunidade, em toda amplitude de sua lúgubre graciosidade. A percepção da beleza, filosoficamente, com frequência é associada a uma espécie de reação metafísica ao que é bom de fato, por isso dizemos que aquela história de superação ou de abnegação é tão bonita, ela fala conosco de uma forma que nem sempre compreendemos totalmente. A arte, segundo Aristóteles, deve gerar uma catarse, através da tradução da beleza, mostrando o que é bom e cultivando virtudes aos espectadores. Na narrativa da criação bíblica, há sempre menção da contemplação do criador em relação ao caráter da obra criada: “e viu Deus que era bom”. O princípio de atenção espectadora ao que acontece, enquanto acontece, narrado inicialmente em práticas budistas, hoje foi formalizado com objetivo terapêutico pelas práticas de mindfulness, com evidências promissoras em diversos cenários diferentes. Várias sabedorias milenares e atuais têm nos indicado isso.

Apreciar o lirismo de nosso azar é indispensável. Parafraseando Caetano, cada um deve contemplar a dor e a beleza de ser quem é. Aceitar e observar o desenrolar do próprio filme parece fazer mais sentido. Mecanismos de defesa inconscientes não nos tornam mais aptos a lidar com nossas tragédias. É inútil adotar uma postura reativa, fingindo que temos controle sobre cada causa e consequência a serem desenroladas nessa narrativa surpreendente, já escrita pela lei natural, que é a realidade. Contemplar nosso comportamento muitas vezes nos traz respostas a perguntas sobre as quais nos indagamos com frequência, enquanto dirigimos e torcemos para o sinal vermelho se abrir, passeamos por feeds de redes sociais e canais de televisão. Algumas respostas não precisam ser descobertas, só percebidas através da apreciação detalhada de nossa epopeia.

René Magritte. La Reproduction interdite. Brussels, 1937.

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