Antidepressivos funcionam?

Este é um texto que eu estou planejando escrever há uns quatro anos. Chegou a hora de levantar, tirar a poeira dos artigos que estão há anos esperando para serem consultados, tomar um café forte e escrevê-lo. Afinal, há alguns dias postei que antidepressivos talvez não funcionem e uma colega ficou brava. Disse que era um desserviço um profissional da saúde postar aquilo. 

O que quer que eu te diga? Realmente não funcionam.

Stephen Stahl: antidepressivos não funcionam, mas eu prescrevo

Tudo isso começou (para mim) lá no segundo ano de medicina, quando eu era apaixonado por psiquiatria (como sou hoje) e achava que seria psiquiatra no futuro (ao contrário do que acho hoje). Eu estava estudando psicofarmacologia pelo livro do Stahl, que foi um companheiro divertido durante toda minha faculdade. O livro, não o Stahl em pessoa. Foi desse livro que saíram alguns dos meus textos (de autoria própria) favoritos, incluindo aquele sobre cocaína, dinheiro e felicidade (que não é sobre cocaína) e aquele sobre expressões em francês e moléculas cerebrais.

Ele escreve nas primeiras páginas do Capítulo 7 de seu manual de psicofarmacologia (quarta edição, 2013):

Embora a remissão sem recidiva ou recorrência seja a meta amplamente aceita do tratamento antidepressivo, está ficando cada vez mais difícil provar que os  antidepressivos – até mesmo os bem estabelecidos – atuem melhor do que o placebo em ensaios clínicos.

Alguém poderia achar que Stahl fosse um naysayer, alguém que por alguma razão não gosta de antidepressivos e usou sua autoridade para desclassificá-los. Mas não é o caso. Ele escreve logo depois do trecho anterior:

Basta passar um curto período de tempo em um contexto de prática clínica para se convencer de que os antidepressivos são poderosos agentes terapêuticos em muitos pacientes.

Ou seja, Stahl admite usar antidepressivos na prática clínica e emite sua opinião pessoal de que eles funcionam. Porém, afirma que ensaios clínicos controlados não foram capazes de comprovar seus benefícios até então.

Medscape: funciona, não funciona, funciona, não funciona

Essa discussão está fora de minha alçada. Minha opinião não vale nada. Existem psiquiatras renomados no mundo todo discutindo isso. Mas eu posso dizer um pouco do que ouvi sobre o que eles estão dizendo. 

No Medscape, ainda em 2017, alguns psiquiatras diziam que antidepressivos, em particular os inibidores seletivos da recaptação de serotonina, funcionam, sim, e que isso já fora provado em trials clínicos (liderados por estudiosos financeiramente ligados a companhias farmacêuticas). Enquanto isso, outros argumentavam que os resultados positivos dos trials não representam nenhum benefício clínico na vida real — que é o que realmente importa no final, já que a medicina baseada em evidências é um meio, não um fim. 

Em 2018, o Medscape caprichou no título de seu artigo: Confirmado: antidepressivos funcionam para depressão maior. A animação vinha do fato de essa ser a conclusão de uma meta-análise gigante, envolvendo mais de 500 trials, 21 antidepressivos diferentes e 116.000 pacientes.

Poucos meses depois, a resposta veio: Antidepressivos funcionam para depressão maior! Não tão rápido. Nesse artigo, o Dr. Ghaemi diz que o fuzuê sobre meta-análise recém-publicada no Lancet é infundado, e que a conclusão do estudo repete a mesma ladainha já repetida há muito tempo (“antidepressivos são melhores do que placebo”), omitindo que: 1. eles são muito pouco melhores estatisticamente, sem valor clínico na vida real, e 2. os antidepressivos com efeitos mais robustos são os mais antigos, menos usados e com mais efeitos colaterais (os tricíclicos), enquanto os novos antidepressivos (inibidores seletivos da recaptação de serotonina) têm pior desempenho nos trials.

Em 2019, a discussão continuava, com os mesmos debatedores lá de 2017, inclusive. Por um lado, o sueco Dr. Eriksson argumentava que os trials não conseguiam estabelecer a eficácia dos inibidores seletivos da recaptação de serotonina para casos leves e moderados de depressão porque usavam as ferramentas erradas para isso. Pelo outro, o americano Dr. Kirsch dizia que a escala nova que o Dr. Eriksson estava usando excluía alguns sintomas centrais da depressão. Entre os dois, o japonês Dr. Furukawa ponderou que o estudo levantava uma questão ainda mais fundamental: o que é depressão?

Afinal, o que é depressão?

É claro que minha opinião sobre o que é depressão não vale nada. Se eu não posso opinar sobre a eficácia dos antidepressivos, que é uma questão relativamente fácil e objetiva, imagina se eu poderia acrescentar algo ao debate sobre a definição da depressão.

Mas há um ponto no questionamento de Furukawa. 

Segundo o Uptodate, a prevalência de depressão entre adultos foi de 27% — sem contar a distimia. Isso quer dizer que uma a cada três ou quatro pessoas que você conhece tem, teve ou terá depressão. É uma prevalência muito alta e isso me incomoda, porque um dos diversos parâmetros que utilizamos para definir o que é “doença” é o desvio da “normalidade estatística”. Ninguém é considerado doente, por exemplo, por ter 1,70 ou 1,90 metro de altura — as definições de nanismo e gigantismo dependem do que é “estatisticamente normal” para um ser humano (tanto em altura como em níveis hormonais). 

[Edição 11/04/2021: 

A prevalência de depressão na população geral no mundo inteiro, segundo o Uptodate, na verdade é de cerca de 12%. Eu li o número errado. Obrigado ao Biloca pelo toque.]

É claro que o desvio ou não-desvio da normalidade estatística não é suficiente para definir o que é doença. A obesidade é definida a partir do peso considerado “normal”, mas cada vez mais pessoas se encontram acima desse limite — ou seja, ser obeso é cada vez mais “normal”, e mesmo assim a obesidade continua sendo um problema de saúde pública (ainda que chamar obesidade de “doença” soe curiosamente ofensivo). 

A título de curiosidade, pesquisas apontam que a prevalência de obesidade nos Estados Unidos passou de 22% em 1994 para 42% em 2018.

Ainda assim, a obesidade é considerada uma doença porque ela é associada a diversos outros problemas de saúde e aumento de mortalidade. Pessoas obesas morrem mais, e isso ficou escancarado nesta pandemia de COVID-19.

Da mesma forma, a depressão é associada a diversas outras morbidades e a maior mortalidade. Então faz sentido que ela seja considerada uma doença. 

Mas esse também não é o único critério para que algo seja considerado doença, é claro. Ser homem prediz maior mortalidade do que ser mulher, mas ser homem não é doença. Ser mulher prediz maior chance de depressão, mas ser mulher não é doença. Ser homem e jovem está associado a maior mortalidade por causas violentas, mas ser homem jovem não é doença. Divórcio prediz suicídio, mas ser divorciado não é uma doença. E por aí vai.

O grande problema para mim está na questão do título deste texto: antidepressivos funcionam? Porque se antidepressivos não funcionam, considerando que eles são tão eficazes quanto a psicoterapia no tratamento da depressão, esta seria uma entidade clínica que uma em cada três ou quatro pessoas apresentam ao longo da vida, e que não tem cura. E aí, o benefício de considerá-la uma doença — que seria levar os pacientes aos serviços de saúde, tratá-los e aumentar sua qualidade e expectativa de vida — deixa de existir. 

É como diz um velho ditado: o que não tem remédio já está remediado. E o que não tem solução não é um problema. 

Eu não estou dizendo que depressão não existe. Inclusive, os casos mais graves (e raros) de depressão demonstram resultados melhores nos trials de antidepressivos. Pelo menos nesses casos (graves e raros), o conceito da doença depressão me parece bem útil.

E eu não estou dizendo que antidepressivos não funcionam (apesar de ter dito exatamente isso no começo do texto — era só uma provocação para entrar no assunto). Quando eu encontro algum paciente no consultório que parece ter depressão, eu ofereço o tratamento padrão (psicoterapia e antidepressivos, caso o paciente queira), mesmo que no fundo eu tenha dúvidas sobre sua eficácia e muitas reservas sobre seu uso.

Mas talvez eles realmente não funcionem. E talvez nem todos aqueles uns entre três ou quatro sejam realmente doentes.

Talvez. Só talvez.

antidepressivos

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