Ideias como ferramentas para agir no mundo

Este texto é a continuação de uma série de posts sobre epistemologia, determinismo causal, livre arbítrio, psicologia comportamental e um pouquinho de neurobiologia. Os textos anteriores são estes:

Nossas escolhas já foram feitas: o mundo segue o mandamento de eternas leis naturais que não permitem exceção; o destino do universo foi selado logo que ele surgiu.

A alucinação fisiológica dos olhos: como nossos sentidos nos enganam e distorcem a “realidade”.

Determinismo causal e livre arbítrio: nosso comportamento segue uma receita e não há espaço para acrescentar nada nela; não há livre arbítrio, mesmo em um mundo não-determinista.

Nossa ilusão de controle: assim como nossos sentidos nos enganam, nossos pensamentos nos enganam e nos dão a sensação de que temos nosso comportamento sob controle; não o temos.

***

Depois de ler Nossa ilusão de controle, um amigo comentou que achou o texto pessimista e que o pensamento de que o mundo é determinista não contribui para nada, não tem valor nenhum. A crítica dele é válida. Eu acredito que pensamentos são ferramentas que nos ajudam a agir de forma mais efetiva no mundo, assim como um computador ou uma enxada o são; por isso, sempre busco encontrar a importância prática de cada ideia que desenvolvo. Não vale a pena gastar horas analisando os pormenores de uma filosofia se isso não for capaz de mudar a forma como você age no mundo.

Porém, nem sempre a importância prática de uma teoria pode ser imediatamente concebida. Às vezes, precisamos de fé para acreditar que tiraremos algo útil daquela filosofia, mesmo que a priori não consigamos captar qual poderia ser essa utilidade.

Não é o caso do meu ensaio sobre livre arbítrio e determinismo. Eu vejo várias implicações práticas importantes dessas ideias, mas ainda não consegui organizá-las e destilá-las suficientemente: preciso avançar mais na discussão teórica, antes de garimpar sua importância pragmática.

No entanto, para esse meu amigo e para outros amigos leitores que também encaram ideias como ferramentas que nos ajudam a tornar o mundo melhor, eu vou comentar de relance algumas consequências que o pensamento que desenvolvi nos últimos textos pode ter em nosso cotidiano, na vida real.

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Uma amiga comentou, em relação à série de textos sobre determinismo e livre arbítrio, que eles davam a sensação de impotência humana perante o mundo: já que tudo que acontece é consequência inevitável do que aconteceu antes, já que “nossas escolhas” são apenas resultado das moléculas cegas do cosmos seguindo as leis naturais, qual é o sentido de fazer qualquer coisa? Nós não podemos mudar o destino do mundo, pois ele já foi escrito. Por que, então, fazer algo, em vez de fazer nada? Por que se preocupar?

É um questionamento natural, caso você aceite que o mundo é determinista. Porém, ele decorre em grande parte da tendência humana ao ideal e ao divino. Se voltarmos nossa atenção ao presente, ao que é real, ao aqui e ao agora, o “fato” de que o mundo é determinista não importa: já que não sabemos quais são os desígnios do universo, é como se seu destino estivesse, na verdade, aberto.

Nesse sentido, a dúvida niilista de minha amiga é tão válida quanto a seguinte afirmação: já que o mundo é determinista, vou sair no mundo e fazer tudo que eu quero fazer, da melhor forma possível, com o máximo de dedicação possível, pois talvez seja esse o destino do universo. 

As duas visões são válidas, pois você não sabe o que o futuro cósmico guarda; se você encara a possibilidade do determinismo de maneira negativa, agirá de maneira negativa, e seu futuro tenderá ao caos; se, por outro lado, você encara a possibilidade do determinismo de forma positiva, agirá de maneira positiva, e seu futuro tenderá à boa fortuna. É um tipo de profecia autorrealizável.

Tudo depende da forma como você reage à ideia de que o mundo é determinista.

Imagine que você soubesse de antemão o resultado da final de handebol masculino das Olimpíadas UFU 2019: Medicina UFU campeã. Imagine que você fosse um jogador dessa equipe e tivesse tido uma visão divina do que aconteceria ao final dos 60 minutos de jogo. Esse conhecimento poderia te impelir a se dedicar mais ainda ao jogo, contribuindo ainda mais com sua equipe, o que no final aumentaria sua satisfação de ter vencido o campeonato; ou ele poderia te desanimar, tirar a graça da partida, e aí você não se dedicaria tanto e, mesmo na vitória, amargaria o sentimento de não ter se dedicado tanto ao esporte e aos seus companheiros.

Esse exercício de pensamento mantém suas conclusões se você pensar em um jogador da equipe perdedora: sabendo de antemão o resultado da partida, ele poderia se dedicar mais ainda ao jogo, na tentativa frustrada de mudar o destino do universo, ou ele poderia se resignar e jogar mediocremente. O resultado do jogo não mudará, mas a atitude do jogador sim: é muito melhor se dedicar ao máximo e perder, do que se dedicar pela metade e perder.

O jogo já foi ganhado ou perdido: o destino do universo já está escrito. Mas você, jogador, não sabe ainda qual será o resultado. E não importa: você não erra ao se dedicar ao máximo ao jogo, mesmo que no final você o perca.

Essa é uma ideia ética prática que podemos tirar daqui: na dúvida, é melhor se autoafirmar e jogar o jogo; o cinismo niilista não compensa.

***

Outra coisa que me incomodou um pouco após o último texto foi perceber que muitas pessoas não entenderam o que eu quis dizer — e de forma alguma quero dizer que seja culpa delas. Alguns leitores focaram no conceito de que muito do nosso comportamento é inconsciente, instintivo, intuitivo, e que apenas uma pequena parte dele é fruto da racionalidade humana.

Bem, isso é verdade e é uma ideia interessante e eu pretendo desenvolvê-la também no futuro. Mas o meu principal ponto era: até nossos comportamentos refletidos, deliberados, conscientes, aparentemente controlados, na verdade, estão fora de nosso controle.

Eu, escrevendo este texto, estou concentrado em pensamentos racionais, organizados, complexos, e tenho a impressão de que “criei” este texto, que de alguma forma uma força estranha que há dentro de meu corpo ou minha mente foi capaz de decidir qual palavra usar em cada linha. Mas, na verdade, este texto e o meu escrever deste texto é simplesmente resultado de tudo que já aconteceu no universo antes, orquestrado pelas leis naturais.

Minha consciência é tão impessoal, casual e randômica quanto minha inconsciência.

***

Qual seria o ensinamento prático que poderíamos tirar dessa ideia?

Eu ainda não sei com certeza. Estou escrevendo esta porção de textos justamente para clarificar isso. Mas eu tenho uma noção de onde quero chegar. Minha linha de raciocínio é mais ou menos a seguinte (neste momento):

  1. Há muitas coisas que estão fora de nosso controle que influenciam sobremaneira nossa vida: o lugar onde nascemos, a situação financeira da nossa família, o índice de inflação do nosso país nos nossos primeiros anos de vida etc.
  2. Existem outras coisas que estão tão fora de nosso controle quanto isso, mas que são mais “pessoais”: nossa cor de pele, a cor de nossos olhos, a facilidade com que acumulamos gordura, a facilidade com que lidamos com dados, nosso limiar de dor física e emocional etc.
  3. Existem outras coisas que estão tão fora de controle quanto os exemplos dos dois itens anteriores, mas que a maioria das pessoas acredita que estão sob nosso controle: o quanto nos dedicamos a algo, nossa capacidade de acordar de manhã, quantas horas somos capazes de estudar por dia, o quanto podemos resistir a uma barra de chocolate etc.
  4. Nós aceitamos de bom grado que circunstâncias sociais criem injustiças, mas não aceitamos que circunstâncias biológicas criem injustiças. Meritocracia é um conceito enxovalhado nos dias de hoje porque não haveria competição justa entre pessoas de classes sociais distintas, por exemplo, mas também é verdade que não há competição justa entre alguém de QI 145 e alguém de QI 100.
  5. Visto que a diferença de atributos pessoais entre dois sujeitos é inexorável, tendemos a aceitar essa forma de injustiça. Nesse contexto, colocamos o esforço pessoal, a motivação, a vontade de fazer, o esforço consciente como o grande fator que possibilita que mudemos nossa realidade: aquele que se esforça mais vai mais longe. Essa garra é associada até mesmo ao caráter, ao valor de alguém como pessoa. Mas os níveis de motivação e resiliência de alguém são tão determinados por fatores fora de seu controle quanto o lugar onde ele nasceu, a cor de seus olhos e seu QI.
  6. Nós tendemos a ter empatia por alguém que tem uma doença metabólica ou endócrina que faz a pessoa acumular gordura, mas tendemos a ser menos compassivos com alguém que acumula gordura por ser incapaz de combater os impulsos reptilianos que o levam a consumir barras de chocolate.
  7. Nós guardamos ainda uma noção pouco nítida de “essência” do ser humano que considera que o lugar onde ele nasceu e a cor de seus olhos são incidentais, enquanto seus valores, sua inteligência e sua personalidade são essenciais. Para mim, isso não faz sentido. Eu busco demonstrar que os pensamentos mais altivos e elevados já pensados por um ser humano são tão incidentais (ou essenciais) quanto todos os seus outros atributos físicos e mentais.

Eu não sei ainda o que se pode tirar disto, mas é uma ideia que quero desenvolver e acredito que haja implicações práticas no que se refere a justiça social, responsabilidade moral e assuntos relacionados. Eu quero fazer isso juntando o que já desenvolvi sobre determinismo e livre arbítrio com o que escrevi sobre ilusões e erros de percepção. Um dos objetivos é chegar a uma forma inteligente de definir o que é verdadeiro, considerando que nossos sentidos nos enganam. Podemos fazer isso mudando nossa orientação do eterno para algo mais mundano (assim como tentei desviar a atenção de minha amiga niilista do ideal para algo terreno).

Ainda não sei onde vai dar. Mas é essa a estrada que estou percorrendo.

makakim

4 comentários em “Ideias como ferramentas para agir no mundo

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  1. Tenho lido os textos e senti dificuldade como seus amigos. Esses seus exemplos práticos foram bons para clarear e entender aonde você quer chegar. Pode ser uma tendência nossa de querer entender logo o que está sendo dito. Suas análises têm me tirado da zona de conforto e dado curiosidade para saber como você vai continuar destrinchando. Vai em frente 😉

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  2. acredito sim que o universo, de forma geral seja deterministico, mas nós, como seres individuais e de consciencia, não ha como eu acreditar que nossos futuros individuais sejam determinados, até porque eu nao entendo como funciona o consciente de forma alguma, mas sei que tenho livre arbitrio (muito menos no que realmente quero acreditar ter, admito, mas ainda assim o tenho). E como seu amigo disse, se tudo é determinado, eu me conhecendo o pouco que conheço, sei que não vou fazer “o melhor”, só o farei se eu acreditar que realmente pode trazer algo de bom, como ser humano, acredito que precisamos, como necessidade biologica, de esperança, qualquer esperança. e se não a tivermos, nós simplesmente entregaremos os pontos. não acredito que a discução e o ensaio sobre o determinismo nao tenham valor, mas me recuso a acreditar que meu futuro, meu futuro individual seja determinado pela aleatoriedade do universo, se isto fosse verdade, me tiraria todo o sentido da vida

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    1. vc realiza o destino do universo em cada ação sua e em cada pensamento seu. o determinismo não é razão para deixar de ver sentido na vida.

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